Título: Ajude o BC, presidente!
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/03/2008, Espaço Aberto, p. A2

No último sábado, a principal manchete deste jornal veio assim: Lula concorda com BC e diz que consumo em alta é risco. Pois, no dia anterior, o presidente advertira que, ¿se cresce muito o consumo e a indústria não investe em novas fábricas, em nova produção, a gente tem de volta uma doença desgraçada, que é a inflação¿.

Como sempre estamos a insistir na necessidade de mais investimentos, inclusive por parte do governo, é confortante ver o presidente preocupado com o assunto, pois quase sempre ele enfatiza muito mais o consumo. E, também, sem essa preocupação com o impacto inflacionário, uma novidade que justifica a manchete.

O trecho ¿Lula concorda com o BC¿, contudo, me pareceu ainda mais insólito. Ao examinar a matéria, vi que foi uma inferência do repórter que cobriu o evento, de que a afirmação do presidente reforçava o alerta contido na ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central (BC).

De fato, descontada a retórica, essa afirmação lembra trechos dessa ata. O documento, relativo à reunião encerrada no dia 5 deste mês, veio em termos bem duros, várias vezes ressaltando a preocupação desse comitê com sua percepção de um desequilíbrio entre o crescimento da demanda de bens e serviços além da capacidade de oferta da economia, gerando pressões inflacionárias.

Pela televisão, notei o presidente novamente afiado com o ¿economês¿, ao dizer que as importações contribuem parcialmente para aliviar essas pressões. O Copom também batia nessa tecla, ao lado de enfatizar também a importância dos investimentos, só que, na mesma ata, se mostrou incrédulo quanto à capacidade de estes e aquelas aliviarem as mesmas pressões.

Textualmente, afirma que, ¿embora o investimento venha contribuindo para suavizar a tendência de elevação das taxas de utilização da capacidade, não tem sido suficiente para conter tal processo¿. Quanto às importações, pondera que, ¿embora o setor externo tenha o efeito de moderar a inflação no setor de transacionáveis, o aquecimento da demanda doméstica pode desencadear pressões inflacionárias no setor de não transacionáveis, por exemplo, nos preços dos serviços¿.

No final, veio a ameaça de aumento da taxa básica de juros, afirmando o Copom que cogitou de realizá-lo na mesma reunião, só optando por manter a taxa atual, de 11,25% ao ano, dada a sua avaliação, naquele momento, do ¿balanço de riscos¿ ligado à decisão. Mas reiterou estar ¿pronto para adotar uma (...) política monetária diferente, caso venha a se consolidar um cenário de divergência entre a inflação projetada e a trajetória das metas¿. E também ¿que a persistência de descompasso importante entre o ritmo de expansão da demanda e da oferta agregadas tende a elevar a probabilidade de que tal cenário venha a se materializar¿.

Pouco menos de um mês nos separa da próxima reunião do Copom, nos dias 15 e 16 de abril, e fiquei imaginando como o presidente poderia ajudá-lo, fazendo isso a partir de sua renovada percepção do quadro inflacionário, refletida nas análises econômicas mais elaboradas que passou a fazer da inflação.

Outra razão é que a leitura da ata mostra que o Copom se queixa da contribuição inflacionária do presidente, ainda que numa linguagem dissimulada por termos técnicos, mas que ele não terá dificuldade de compreender. Aliás, um dos testes por que passam os estudantes de Economia é a sua capacidade de analisar a relação entre duas variáveis, mas considerando também o efeito de outras, e esses recentes pronunciamentos do presidente demonstram o seu avanço no ramo.

Sobre a contribuição inflacionária do presidente, não é a primeira vez que uma ata do Copom a menciona. Desta vez, ao falar dos ¿diversos fatores de estímulo que atuam sobre a atividade econômica¿, o Copom destaca ¿a expansão do crédito e do emprego, a flexibilização monetária já realizada, os impulsos fiscais e, em alguns segmentos, a recomposição dos reduzidos níveis de estoques¿. Noutro trecho, diz especificamente que aos fatores de sustentação da demanda ¿devem ser acrescidos os efeitos das transferências governamentais e de outros impulsos fiscais esperados para este e para os próximos trimestres¿. Essas transferências também são mencionadas noutro trecho.

Ora, ¿impulsos fiscais¿ são um eufemismo para o que popularmente se chama de gastança compulsiva; por sua vez, as ¿transferências fiscais¿ significam o destaque que nessa compulsão têm os gastos previdenciários e assistenciais, anualmente turbinados por fortes aumentos do salário mínimo e periodicamente por programas de extensão desse segundo tipo de benefícios, que, além de a crianças e suas famílias, chegam agora a adolescentes e até a policiais.

O último impulso fiscal que vi gera efeitos adicionais sobre a demanda não apenas nos próximos trimestres de que fala o Copom, mas se estenderão desde já até 2011, pois o governo federal decidiu dar fortes aumentos a 800 mil de seus servidores e de forma predeterminada até o mesmo ano. O longo alcance no tempo é justificado para pressionar menos os gastos públicos anuais. Sabendo, contudo, do dinheiro adicional, muitos servidores recorrerão ao sistema de crédito e passarão a gastar por conta, ampliando imediatamente a demanda, que o Copom já vê como fortemente aquecida.

Assim, no atual quadro inflacionário caberia ao presidente ajudar o BC, que só conta com a taxa de juros, a combater com outra ferramenta a desgraçada doença da inflação, contendo tanto seus recorrentes impulsos fiscais no presente como os que anuncia para seus funcionários no quadriênio à frente, levando-os a gastar desde já uma parte do que receberão no futuro.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), pesquisador da Fipe-USP e professor associado à Faap, foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

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