Título: Corrupção sistemática, corrupção venal ::
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2007, Economia, p. B2

Muitos países hoje bem classificados nos rankings relativos à corrupção têm longa história de práticas corruptas bastante disseminadas. Experiências de países que superaram esta situação são educativas para o Brasil, que, nesta matéria, ainda tem muito caminho a percorrer. Na história da economia brasileira são inúmeros os exemplos de fragilidade de direitos de propriedade e de acesso privilegiado a bens e serviços, configurando a apropriação de ¿rendas de escassez¿. Um objetivo de longo prazo importante de qualquer governo deveria ser a consolidação de direitos de propriedade e a redução de oportunidades para a extração de ¿rendas de escassez¿.

O que o paradigma clássico britânico pode ensinar é que o aprofundamento do poder e da legitimação do Parlamento foram processos de longa duração. A Revolução Gloriosa de 1688 apenas fortaleceu o Parlamento e viabilizou o controle das ¿depredações do monarca¿. A superação da ¿Old Corruption¿ - prebendas, sinecuras, burgos podres - ocorreu pari passu com as reformas políticas de ampliação do eleitorado a partir de 1832. O importante é que o foco de interesse é a relação entre a ampliação da franquia eleitoral, o avanço das práticas democráticas e a defesa efetiva dos interesses da maioria.

O retrospecto histórico brasileiro, por seu lado, é repleto de contradições. No Império, restringiu-se o acesso de imigrantes à terra abundante para preservar a grande propriedade agrícola. Na República Velha, embora tenha havido progresso quanto aos direitos de propriedade da terra, se criou aparato institucional que permitiu a valorização do café sob a proteção de barreiras à entrada de novos produtores. Às tarifas de importação, muito altas já no final do Império, somaram-se restrições quantitativas às importações, em resposta à grande depressão, que duraram 60 anos. Com a aceleração da inflação pós-2ª Guerra Mundial se tornou esporte nacional ter acesso ao câmbio barato e ao crédito subsidiado. A 3ª República afundou-se na agonia de um déficit crônico das contas públicas. Apesar da arrumação das contas públicas após o golpe militar - na esteira da panacéia da correção monetária -, houve continuidade na essência da política econômica: abertura assimétrica, privilegiando exportações, persistência do gosto de escolher vencedores, grande peso do Estado na economia. Os choques externos e a deterioração das contas públicas alimentaram a voragem inflacionária na economia indexada.

A estabilização de 1993-1994 marca a reversão de clara tendência de longo prazo de erosão de direitos de propriedade associada à perda de poder de compra da moeda. A conversão de reais de 1993 em mil-réis (1822-1942) requer multiplicador eloqüente: 2,75x1015. Na falta de índices de preços seculares podem ser usadas taxas cambiais para comparar diferentes períodos. A deterioração até o golpe militar foi inexorável: no Império, a desvalorização cambial anual média foi de 1,4%; na República Velha, aumentou para 3,6%; e no primeiro período Vargas, para 5,5%; para atingir 30,7% na terceira República. Houve redução sob o regime militar até 1980, mas foi limitada: 22,5% de desvalorização anual. Mas, entre 1980 e 1993, a taxa foi melancólica: 565% ao ano. Esse desempenho patético necessariamente relativizou qualquer progresso associado à evolução de políticas públicas que reduziram o escopo para a extração de ¿rendas de escassez¿.

A literatura especializada sobre corrupção faz distinção entre ¿corrupção sistemática¿ e ¿corrupção venal¿. Na corrupção sistemática - que resulta da coalizão entre políticos que criam oportunidades para ¿rent-seeking¿ e os extratores de rendas de escassez - o político corrompe o econômico para se perpetuar no poder. Na corrupção venal, mais trivial, o econômico corrompe o político para extrair ganho econômico.

No Brasil, nos últimos 20 anos, têm havido progressos notáveis em relação à superação tanto da corrupção sistemática quanto da corrupção venal. A erradicação da corrupção sistemática avançou com a consolidação da redemocratização na Constituição de 1988, com a reforma de disposições constitucionais menos realistas, com a capacidade demonstrada de forçar a renúncia de presidente com conduta imprópria em 1992, coroada desde então pela alternância de coalizões políticas de configuração bastante diferenciada no controle do Executivo, com amplo apoio parlamentar. Quanto à corrupção venal houve significativos progressos quanto à liberalização comercial, privatizações e desregulamentação, e estabilização da economia.

A relevância desses avanços recentes talvez tenha estimulado a ilusão de que a corrupção sistemática tivesse sido deixada definitivamente para trás. Recentemente têm aumentado as dúvidas quanto à irreversibilidade de tais avanços, em vista do fracasso na consolidação de partidos, condição essencial para que prevaleça relação virtuosa entre democracia efetiva e o fim da ¿corrupção¿ nas suas diversas articulações entre os planos político e econômico. Ou seja, fazer com que democracia gere progresso institucional que preserve efetivamente os interesses da maioria.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio