Título: Ciência, tecnologia e importações
Autor: Marcelo de Paiva Abreu, Marcelo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/11/2007, Economia, p. B2

Durante longo período da história brasileira, a industrialização substitutiva de importações (ISI) cumpriu papel crucial como motor do crescimento da economia. A indústria surgiu na esteira das políticas expansionistas do início da República Velha e se manteve relevante até a depressão de 1928-1932, amparada por tarifas altas e critérios de 'similaridade nacional'. De 1930 até o golpe de 1964 se viveu a idade de ouro, quando a ISI atingiu setores como material de transporte e bens de capital. Apesar de perder importância como motor do crescimento, à medida que caiu a penetração das importações na economia, a ISI persistiu por mais 20 anos com uma escalada da proteção na esteira dos choques de petróleo e da crise da dívida. Enraizou-se sólido ranço autárquico. A melancólica política de reserva de mercado na informática é emblemática quanto aos danos causados pela sobrevida de tais distorções. Proteção alta levou à deterioração da qualidade e à explosão dos preços de bens de capital nos anos 1980. Os custos de investimento dobraram em relação a 1970, tendência só revertida com a liberalização comercial do início dos 1990.

Há sinais de que estas lições não foram aprendidas. Nas políticas públicas relativas a capital humano, adotadas pelo atual governo, há sinais de repetição de idéias equivocadas que inspiraram a inércia autárquica quanto à substituição de importações de bens industriais, inclusive bens de capital. É o que está implícito nos critérios adotados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educação para avaliar a pós-graduação no Brasil. O critério mais importante adotado na atual avaliação trienal foi a relação entre o número de doutores formados e o número de mestres formados por cada centro. Tem sido significativa a resistência do órgão em aceitar que o indicador deve ser aplicado levando em conta especificidades de áreas, sob pena de gerar, como foi o caso, avaliações frontalmente conflitantes com a realidade.

Ao basear a avaliação na aplicação mecanicista desta relação, deixou-se de levar em conta elementos que são de vital importância para análises que produzam ordenações de excelência que sejam críveis e legítimas. Foram punidos centros de excelência nacionais que, além de contarem com programas de doutorado de prestígio, formam alunos de mestrado que têm sido regularmente atraídos para se doutorarem nos melhores departamentos do Hemisfério Norte, usualmente com oferta de bolsas bastante generosas. Esses doutores têm regressado ao País e ocupado posições destacadas nos mais diversos setores, da academia ao governo.

O que espera a Capes? Que um mestre formado no Brasil prefira fazer o seu doutorado no País e não nas melhores universidades do mundo, deixando de levar em conta vantagens quanto a condições de trabalho e remuneração? Não é fácil mostrar que programas de bolsas-sanduíche e de pós-doutoramento sejam, em todos os casos, substitutos eficazes de uma formação integral no exterior. De qualquer modo é defensável a convivência de modalidades diversificadas de apoio à pós-graduação de bom nível. A exposição internacional, ao contrário do que parece ser a crença implícita na política oficial de pós-graduação, e como mostram os casos da China e da Índia, deve ser estimulada e não punida. Os interesses pessoais dos mestres que vão fazer os seus doutorados no exterior são coincidentes e não conflitantes com o interesse público. Se esses doutores, que se formaram mestres no Brasil e se doutoraram no exterior, forem computados com base em critérios razoáveis - e não simplesmente ignorados, como é o caso atualmente -, os resultados da aplicação da regra decisória da Capes são revertidos.

Essas distorções no processo de avaliação estão em parte relacionadas à idéia de que, se produzimos doutores no Brasil em qualquer área, não precisamos de doutores formados no exterior. É claro que, em algumas áreas, a formação de doutores no Brasil é similar à de doutores formados em universidades de topo de linha. Mas, em muitas outras especialidades, há hiatos significativos entre a qualidade de doutores oriundos dos melhores departamentos do mundo e dos melhores centros do Brasil. Só a auto-ilusão é capaz de ocultar tais diferenças.

Manifestação desta auto-ilusão - se a imagem não é muito boa é preciso reformar o espelho - é a base de dados utilizada para avaliar a produção científica. Em muitas áreas, a classificação de publicações é excessivamente leniente: grandes revistas científicas são classificadas na mesma categoria de revistas nacionais sem expressão. As ponderações utilizadas não guardam relação com as medidas de impacto reconhecidas pela comunidade científica internacional. A tentação de considerar de alta qualidade uma revista apenas porque nela se consegue publicar parece ser coletivamente incontrolável.

Tal como na política industrial é necessário encontrar equilíbrio adequado entre produção interna e exposição ao mercado global. A atual política de avaliação da pós-graduação adotada pela Capes parece ter passado ao largo da busca de tal equilíbrio.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio e pesquisador I-A do CNPq

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