Título: Água por água
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/07/2007, Economia, p. B2

Será que o fiasco na reunião do G-4 (Brasil, EUA, Índia e União Européia) em Potsdam foi tão surpreendente assim? A dura realidade é que o impasse, que já se havia manifestado em Cancún, em 2003, ainda persiste. A prática do jogo do contente se revelou insuficiente para ressuscitar a Rodada: há lixo demais para varrer para debaixo do tapete. A convergência entre União Européia (UE) e EUA ressurgiu na forma de complacência recíproca quanto a propostas medíocres de redução de barreiras tarifárias na UE e de subsídios nos EUA. O que surpreendeu foram os repiques temperamentais dos negociadores. Uns acusando o outro lado de se dedicar a mudar as traves de lugar e questionando quão bem o Brasil e a Índia representam os demais países em desenvolvimento. Outros manipulando atrasos e alegações prematuras de fracasso como parte do seu jogo de cena ou sublinhando, como o representante brasileiro, a recusa a 'trair a indústria'.

Tudo indica que as propostas que ficaram na mesa após o impasse foram de corte de 54% das tarifas agrícolas européias, US$ 17 bilhões de teto para os subsídios agrícolas dos EUA e adoção do coeficiente 30 para a fórmula suíça na redução de tarifas industriais (no caso do Brasil, isso significaria que a tarifa consolidada de 35% cairia para 16,2%). E que não foram abordados temas tão espinhosos como a limitação de produtos sensíveis quanto ao tratamento tarifário e subsídios, para não falar de anti-dumping e outros. Foi a vitória do grotesco protecionismo agrícola da União Européia e dos EUA, do protecionismo industrial brasileiro e do frondoso protecionismo indiano. A percepção de muitos é de que o Brasil esteve a reboque da intransigência indiana.

Os impasses sucessivos nas negociações são, em parte, conseqüência de decisões já alcançadas na Rodada Doha, que dificultam o avanço da liberalização. Os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC), ao decidirem negociar tomando como ponto de partida tarifas ou subsídios agrícolas consolidados - em vez de tarifas efetivamente aplicadas ou de subsídios efetivamente pagos -, sancionam uma situação em que de fato na fase inicial de implementação as 'concessões' recíprocas efetivas seriam nulas. O Brasil negocia concessões relacionadas a tarifas industriais baseadas em tarifa consolidada de 35%, quando a que realmente aplica está em torno de 10%. Os EUA oferecem como concessão reduzir os seus subsídios agrícolas para um teto de US$ 17 bilhões, quando estão de fato pagando em torno de US$ 11 bilhões. É a troca do que, no jargão, seria chamado de água por água, ou seja, de espuma por espuma. O princípio de permitir a exclusão de produtos sensíveis em nome da expediência política - alega-se que, de outro modo, o poder dos interesses especiais bloquearia concessões horizontais que não acomodassem exceções - faz com que se acumule uma lista de temas sensíveis atrasados que, com o correr do tempo, é de negociação quase impossível. O argumento que faz sentido do ponto de vista do desmantelamento efetivo da proteção é que interesses especiais em economias específicas só poderão ser atacados em ambiente de concessões recíprocas. Desgravações deveriam ser baseadas em fórmulas a serem aplicadas sem exceções.

O isolamento do Brasil agora tem cheiro similar ao do início da Rodada Uruguai em 1985-1986. Um claro corolário de Potsdam foi a fragilização da coalizão do G-20. Abriu-se espaço para proposta de novo grupo de países composto por membros do G-20 - Chile, México, Tailândia, Peru - somados a Costa Rica, Hong Kong, Cingapura e Colômbia. É similar ao grupo do 'café com leite', que contribuiu para o isolamento do Brasil e da Índia no lançamento da Rodada Uruguai. Muitos desses países adotam tarifas de importação bastante reduzidas e estão oferecendo concessões que afetam muito mais significativamente outras economias em desenvolvimento. Tudo isso acompanhado por omissão argentina e silêncio tumular dos 'aliados' chineses.

Embora o governo tente orquestrar a defesa da tese de que não havia alternativa para a política econômica externa brasileira, o fato é que o baque em Potsdam não é de digestão fácil. O Itamaraty perde mais do que outros protagonistas porque não tem nenhum resultado diplomático positivo recente a apresentar. É difícil imaginar que haja grande satisfação com os resultados da diplomacia econômica nos últimos anos. Em tempos recentes parece ter-se tornado regra que a posição brasileira esteja a reboque de parceiros menores e/ou mais radicais com os quais tem interesses muitas vezes conflitantes: Venezuela, Índia e até mesmo a Argentina kirschneriana. Tentar remendar estragos acenando com resultados da integração Sul-Sul é pura embromação para minimizar o fiasco, como bem indicam as pífias listas preferenciais negociadas entre a Índia e o Brasil.

Uma política externa ineficaz e caudatária combina bem com a lenta dilapidação dos resultados macroeconômicos duramente alcançados no primeiro mandato a cada manifestação de ministros medíocres. Há muito 'goodwill' a malbaratar, mas, com tanta incompetência à solta, o presidente pode acabar descobrindo que a sua popularidade, afinal de contas, não era blindada.