Título: 'Transplantado' genoma de bactéria
Autor: Escobar, Herton
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/06/2007, Vida&, p. A22

Cientistas anunciaram ontem o primeiro transplante bem-sucedido de genomas - o conjunto de DNA que contém todas as instruções básicas para a construção e funcionamento dos seres vivos. A cirurgia genética foi realizada entre duas espécies aparentadas de bactérias, sob a batuta do sempre polêmico pesquisador e empresário Craig Venter - o mesmo que, alguns anos atrás, entrou numa corrida com instituições públicas internacionais para ser o primeiro a seqüenciar (e patentear) o genoma humano.

A equipe do J. Craig Venter Institute, em Maryland (EUA), conseguiu substituir completamente o genoma da bactéria Mycoplasma capricolum pelo de uma outra espécie, Mycoplasma mycoides. A primeira não só incorporou integralmente o DNA da segunda como continuou a expressá-lo no seu formato original. Ou seja, a paciente assumiu a aparência e passou a se comportar biologicamente como a doadora. ¿É como se você transformasse um Mac em um PC a partir de um software¿, comparou Venter, em uma entrevista coletiva por telefone.

O experimento faz parte de um ambicioso projeto do instituto para ser o primeiro a produzir uma forma de vida ¿sintética¿, projetada em laboratório. Desde 1995, quando seqüenciou o DNA da bactéria Mycoplasma genitalium (espécie com o menor genoma conhecido desse tipo), Venter e seus colegas vêm buscando identificar qual é o conjunto mínimo de genes que um organismo necessita para sobreviver. Ou seja: a genética elementar da vida.

A partir dessa plataforma básica, esperam um dia poder construir genomas inteiros em laboratório, embutidos com instruções genéticas customizadas aos interesses do homem. Seria possível, então, ¿sintetizar¿ formas de vida inéditas na natureza, programadas geneticamente para executar funções específicas. Por exemplo, bactérias capazes de produzir novas formas de biocombustíveis ou de absorver dióxido de carbono (CO2) da atmosfera, para combater o aquecimento global.

O genoma usado no ¿transplante¿ não foi produzido em laboratório - era o genoma da própria bactéria, altamente purificado. O sucesso da operação, porém, serve como prova de conceito para outra grande barreira técnica do projeto.

Há décadas os cientistas já são capazes de cortar e colar pedaços de DNA no genoma de organismos diversos (inclusive transferir genes de uma espécie para outra, como é feito nas plantas e animais transgênicos). Mas, até agora, ninguém havia conseguido transplantar um genoma inteiro de um organismo para outro.

PATENTE

¿É o pedaço da tecnologia que estava faltando¿, disse o biólogo brasileiro Fernando Reinach, especialista em biotecnologia. ¿Sintetizar um genoma, tecnicamente, não é tão difícil assim, mas não havia como colocar isso dentro de uma célula.¿

Ele acredita que Venter conseguirá, sim, produzir um genoma sintético. E que não vai demorar muito. Venter, inclusive, já depositou um pedido de patente sobre as técnicas que está desenvolvendo e sobre um pacote de 381 genes da Mycoplasma genitalium, que sua equipe já identificou como essenciais para a vida do organismo. ¿Não sei se a patente algum dia será concedida¿, reconheceu Venter.

O genoma total da M. genitalium tem apenas 482 genes - extremamente enxuto, até mesmo para padrões bacterianos. Há anos a equipe vem manipulando o DNA da espécie, retirando ou desativando genes, um de cada vez, para determinar quais são indispensáveis ou descartáveis para a sobrevivência do micróbio. ¿É como se você pegasse um carro e fosse tirando uma parte de cada vez¿, compara Reinach. ¿Se o carro pára de funcionar, você sabe que aquela peça é essencial.¿

¿Queremos saber qual é o genoma mínimo necessário para a vida¿, disse Venter.

OUTRAS ESPÉCIES

A opção por trabalhar com espécies do gênero Mycoplasma é facilmente explicada: são organismos de uma única célula, sem membrana celular e extremamente simples, inclusive para os padrões bacterianos. E se todos os seres vivos evoluíram de um ancestral comum unicelular (como sugere a teoria evolutiva darwiniana), pode-se assumir que os genes essenciais de uma Mycoplasma são uma boa referência do que é importante também para outras formas de vida do planeta.

Fazer o mesmo transplante de genomas entre organismos mais complexos, porém, é algo que está muito distante - se é que um dia será possível. Mesmo diferentes espécies de bactérias têm mecanismos de defesa que destroem DNA estrangeiro, como um corpo humano que rejeita um órgão transplantado. Não fosse pela semelhança genética entre a M. mycoides e a M. capricolum, o experimento dificilmente teria funcionado.

¿(A técnica) funcionou para as espécies que escolhemos, mas não sabemos para que outras espécies poderá funcionar¿, dizem os cientistas, cujo trabalho foi publicado online pela revista Science. A eficiência do processo também foi pequena - só 1 em cada 150 mil células de M. capricolum aceitaram o transplante da prima - e os pesquisadores não sabem, nesses casos, como ocorreu exatamente a troca de genomas.