Título: O Nordeste que não deu certo
Autor: Haddad, Paulo R.
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2007, Economia, p. B2

Em dois anos, a Sudene deverá celebrar 50 anos de existência. Assim, o Nordeste terá acumulado meio século de políticas públicas para o seu desenvolvimento, no pós-2ª Grande Guerra. Num balanço do que de fato ocorreu, em termos de indicadores econômicos e sociais, não há muito que comemorar. Principalmente quando se compara o desempenho dessas políticas com as melhores práticas equivalentes em escala internacional, que tiveram maiores benefícios líquidos para a população-alvo.

O IBGE acaba de publicar os dados do produto interno bruto (PIB) per capita dos municípios brasileiros em 2004. Ali se vê que, dos 1.793 municípios do Nordeste, cerca de 500 têm um PIB per capita inferior a 20% da média brasileira e mais de 1.300, inferior a 30%. Esses municípios economicamente deprimidos estão espalhados por toda a região: nas áreas costeiras, no sertão, no Agreste e na Zona da Mata. O problema do baixo crescimento econômico é, pois, de natureza regional e social, e não apenas um fenômeno climático das tradicionais ¿áreas da seca¿.

Como se sabe, o PIB representa a soma, em valores financeiros, de toda a produção agregada de uma determinada região ou parcela da sociedade (ou seja, países, Estados, cidades) durante um período determinado (mês, trimestre, ano). É importante diferenciar o que é o PIB de um município do que é a renda do município. Nem todo o PIB se transforma em renda para os habitantes do município onde ocorre a produção. Por exemplo: os lucros e dividendos gerados pela produção local podem ir para a remuneração de residentes de outros municípios ou países. Nem toda a renda das famílias do município onde se realiza a produção vem do seu PIB. Por exemplo: a renda das famílias que vem de aposentadorias e pensões ou de transferências governamentais. Assim, como já dizia Keynes, o PIB é uma medida melhor do crescimento econômico, enquanto a renda é uma medida melhor de bem-estar social.

Nesse sentido, pode-se observar que, em quase todo o Nordeste, as transferências de renda promovidas pelo governo federal têm melhorado substancialmente as condições de vida das populações dos seus inúmeros municípios economicamente deprimidos. Da mesma forma, são as transferências fiscais que permitem a sobrevida administrativa de muitas prefeituras da região. Essas transferências se manifestam, no nível da renda das suas famílias, pela aposentadoria social, pelo sistema da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), pelo Bolsa-Família, etc. Em municípios com população inferior a 50 mil habitantes e com baixo PIB per capita, essas transferências de renda chegam a beneficiar mais de 60% das suas famílias. E em relação às finanças públicas municipais, pelas regras adotadas pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM), pela cota-parte livre do ICMS, pelos fundos especiais de saúde e da educação, etc., centenas e centenas de municípios dependem de mais de 80% das transferências federais e estaduais na composição de suas receitas orçamentárias. Quanto menor a escala de um município, em termos de população e de PIB, maior será o seu grau de dependência das transferências intergovernamentais. Se essas transferências fossem eliminadas, em pouco menos de uma década algumas regiões do Nordeste poderiam vir a se assemelhar a países africanos como Serra Leoa ou Somália, do ponto de vista econômico e social.

Assim, após 50 anos de políticas de desenvolvimento regional, as populações e os governos da maioria dos municípios do Nordeste estão sobrevivendo à custa de transferências fiscais e de renda que são extraídas do excedente econômico gerado nos municípios mais prósperos do País. De forma intensa, vai-se consolidando, nesses municípios, a cultura do subsídio, do fundo perdido e da mesada financeira, quebrando a espinha dorsal do empreendedorismo local e da capacidade endógena de organização social e política para modelar o seu próprio futuro. Não é de estranhar que, em 2004, a região concentrasse 42% dos pobres brasileiros e 53% dos extremamente pobres ou indigentes.

A geografia econômica permite vislumbrar, também, muitas ilhas de prosperidade em municípios do Nordeste, com PIB per capita maior que o dobro da média brasileira. Têm, como base econômica, a soja, no oeste da Bahia e no sul do Maranhão; alguns perímetros de irrigação no Vale do São Francisco; o papel e a celulose no sul da Bahia; a exploração petrolífera em áreas costeiras; o turismo de sol e praia; alguns pólos industriais metropolitanos. Nessas ilhas, o que se coloca para reflexão são as questões da sustentabilidade do crescimento e de seus efeitos distributivos. Dois exemplos são ilustrativos.

A distinção entre PIB e renda de um município permite explicar, em parte, o dilema da existência de muitas cidades ricas com populações pobres, em várias regiões do País. Por exemplo: sete dos dez municípios com maior PIB per capita do Brasil, em 2004, têm sua economia baseada na indústria petrolífera, inclusive no Recôncavo Baiano. Mesmo considerando que, em muitos deles, a sua população é relativamente pequena, a qualidade de seus indicadores sociais tem sido, em geral, muito precária. Para reverter esta situação de ¿enclave econômico local ou regional¿ da indústria petrolífera ou de outros grandes projetos de investimento, há muito que se pode fazer para internalizar parcela do excedente econômico por meio de programas de formação de mão-de-obra e de organização de sistemas competitivos de fornecedores locais.

E, em muitas destas bases econômicas do Nordeste, há um subaproveitamento das potencialidades econômicas locais ou microrregionais. Na cadeia produtiva da soja, por exemplo, há mais de cem alternativas de negócios (fármacos, alimentos, cosméticos, etc.), mas, por falta de capital institucional, se limita à produção e à exportação daquilo que menos adensa o seu valor econômico (grãos, farelos e óleo). Na cadeia produtiva do turismo regional se tem viabilizado, no máximo, uma dúzia de atividades que geram emprego e renda, enquanto nas melhores práticas mundiais o turismo de sol e praia tem induzido mais de cinco dezenas dessas atividades.

Vão se passar 50 anos desde que Celso Furtado propôs ao presidente JK uma agenda abrangente e sofisticada de políticas de desenvolvimento regional para o Nordeste. O atual quadro de indicadores econômicos e sociais era exatamente tudo o que o grande economista queria ver superado. Particularmente, não gostaria de ver o elevado grau de conformismo político e de acomodação intelectual das elites da região diante de 24 milhões de pobres e mais de 7 milhões de indigentes.

É muito difícil aceitar, neste contexto, que, ao longo dos últimos quatro anos, as autoridades federais tenham como principal projeto para o desenvolvimento do Nordeste a reconstituição da Sudene, que tem tudo para se transformar, lamentavelmente, numa instituição anódina, que somente terá vida na forma da lei.