Título: Bateu, não levou
Autor: Ming, Celso
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/09/2006, Economia, p. B2

O governo Lula está sendo omisso na defesa do patrimônio público brasileiro na Bolívia. E isso não muda com o aparente recuo ontem anunciado pelo presidente boliviano, Evo Morales.

No início da noite de quinta-feira, autoridades bolivianas passaram o recado ao governo brasileiro de que está 'congelada' a Resolução 207/2006 de 12 de setembro, baixada pelo Ministério de Hidrocarbonetos da Bolívia, que expropriou patrimônio e fluxo de caixa da Petrobrás naquele país.

Esse 'congelamento' é, por si só, um non sense. Como pode uma resolução entrar em vigor e, logo em seguida, ser 'congelada', sem que nenhum novo decreto ou resolução tenha revogado ou alterado os termos da resolução anterior?

E, no entanto, primeiramente o governo Lula considerou 'inaceitáveis' os termos da resolução, como deixou claro na quinta-feira o ministro de Minas e Energia, Silas Rondeau. Em seguida, ao admitir como 'congelada' a decisão anterior, fiou-se mais nas palavras dos mandatários bolivianos, que já tinham quebrado juras anteriores, do que nos termos ainda vigentes da resolução. Se está apenas 'congelada', uma resolução não foi revogada.

O governo brasileiro aparentemente pretende que a sociedade brasileira acredite em que a expropriação seja conseqüência da desarticulação do próprio governo boliviano e não fato consumado longa e detidamente arquitetado em La Paz. No início da noite de ontem, o ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andrés Solis Rada, pediu demissão depois que o presidente Morales confirmou o 'congelamento' e sugeriu certa flexibilização nos termos da resolução.

O governo boliviano não fez nada que não tivesse dito e decretado antes. A 1º de maio, por meio do Decreto Supremo nº 28.701 'Héroes del Chaco', nacionalizou todo o setor do petróleo em território boliviano. Assim, ficou sabido que as instalações da Petrobrás seriam incorporadas pela Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolivia (YPFB) a partir do momento em que, com o apoio técnico do amigão venezuelano Hugo Chávez, se sentisse em condições de assumir as operações.

Se haveria ou não indenização, era questão para se ver depois. Antes de se demitir, o ministro Andrés Soliz Rada advertiu que, uma vez assumidas as refinarias pela YPFB, é a Petrobrás que deve à Bolívia e não o contrário. Segundo ele, a estatal brasileira se apropriou de lucros US$ 320 milhões mais altos do que os permitidos pela lei boliviana, nada mais que três vezes o preço pago pelas refinarias (US$ 105 milhões).

Na verdade, o investimento total na Bolívia nos últimos dez anos, de acordo com os registros da Petrobrás, é de US$ 1,5 bilhão. Mas as refinarias bolivianas são propriedade de subsidiária da Petrobrás com sede na Holanda, país com o qual a Bolívia tem um tratado que garante, como direito líquido e certo, a proteção dos investimentos.

É incompreensível que o secretário Marco Aurélio Garcia lamente mais (ou apenas) o eventual estrago que as trapalhadas do governo Evo Morales estão provocando na candidatura Lula do que o avanço do governo boliviano sobre patrimônio público do Tesouro brasileiro.

O presidente Lula está cometendo dois erros no trato com a política energética do governo boliviano. O primeiro é de avaliação. Até agora, interpretou a radicalização do presidente Evo Morales apenas como encenação política destinada a impor-se à Assembléia Constituinte boliviana e não como fato consumado contra os interesses públicos do Brasil. O presidente Lula parece entender que o governo boliviano está apenas enfiando o bode dentro da sala para depois tirá-lo, como ontem sugeriram as declarações do presidente Morales. Não leva a sério as manobras do governo boliviano, a cada dia mais agressivas. E isso pode custar caro.

O segundo erro é sua demasiada leniência. Vai aturando desaforo sobre desaforo e ainda se comporta como masoquista. Depois de tudo, tratou de arranjar um empréstimo camarada do BNDES para projetos de infra-estrutura na Bolívia.

O sinal que o governo Lula está passando para a Bolívia e para qualquer país da América do Sul é o de que os interesses brasileiros podem ser atropelados impunemente por políticos demagogos. E, se esse político é de país pobre, está autorizado a bater à vontade porque país pobre sempre tem direito a alguma compensação do Brasil.