Título: A condenação de Saddam
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2006, Notas e Informações, p. A3

A menos que se considere a pena de morte inadmissível em qualquer circunstância, quaisquer que sejam os crimes que ela pretenda punir, não pode pairar a menor dúvida sobre a pertinência moral da sentença do Alto Tribunal de Bagdá condenando o ex-ditador Saddam Hussein à morte na forca. Ele foi condenado por ter ordenado o massacre de 148 pessoas numa aldeia xiita, em 1982, em represália a uma tentativa de assassiná-lo. Essa foi apenas a primeira - e comparativamente insignificante - das barbaridades pelas quais Saddam e seus asseclas começaram a ser julgados por um tribunal especial iraquiano instituído pelos Estados Unidos em 2003, o ano da ocupação.

Calcula-se que ao longo dos seus 24 anos no poder, o regime do sunita Saddam exterminou centenas de milhares de curdos e xiitas e infligiu sofrimentos atrozes a incontáveis iraquianos - para não falar das matanças de civis iranianos, com armas químicas, na guerra de 1980 a 1988. Isso o situa entre os piores verdugos da era contemporânea, ao lado do ugandês Idi Amin, por exemplo, embora muito aquém dos carniceiros Hitler, Stalin e Mao, que encharcaram de sangue vastas porções do planeta. Não teria sentido, portanto, contestar a decisão do Tribunal com argumentos humanitários, como seria aberrante deplorar as execuções dos hierarcas nazistas determinadas pelo Tribunal de Nuremberg.

Tudo o mais, no episódio da invasão do Iraque, é um desastre político. Escrevendo, ontem, no Guardian de Londres, o renomado jornalista e historiador britânico Max Hastings lamentou que os americanos deixassem de fazer com Saddam o que, em 1944, o então ministro do Exterior Anthony Eden recomendou que se fizesse na eventualidade de se apanhar Hitler com vida: deixar a decisão a cargo do soldado britânico que o capturasse. Mas, querendo levar Saddam ao banco dos réus no Iraque, em vez de entregá-lo à corte da ONU que julga crimes contra a humanidade, para justificar em retrospecto a invasão, pela rememoração dos horrores do regime deposto, os americanos conseguiram, também aí, o pior dos mundos.

O julgamento do déspota se revelou desde o início um fiasco político e um arremedo do devido processo legal. Juízes foram substituídos, advogados de defesa assassinados, decisões arbitrárias e incoerentes se sucediam - enquanto Saddam fazia da sala de sessões um palanque, escarnecendo dos julgadores e se apresentando como o campeão da causa árabe-muçulmana. ¿Bush deveria ter pedido aos antigos soviéticos que ensinassem os iraquianos como se monta uma farsa judicial¿, ironiza Hastings. O julgamento circense, combinado com as matanças cotidianas, a revelação de atrocidades cometidas pelos ocupantes e a irrelevância do primeiro governo local eleito pelo voto, devolveu a Saddam a liderança do Iraque sunita.

Afinal, estima-se que mais civis iraquianos morreram desde a tomada do país do que sob o tacão do ditador - embora sejam também iraquianos os principais autores diretos da grande maioria das chacinas. O fato é que não há saída boa para essa outra crise de exclusiva responsabilidade americana. Na hipótese pouco provável de a pena de morte ser comutada, pelo menos os sadamitas mais fanáticos serão tomados pelo equivalente ao que na história portuguesa se chamou sebastianismo - a fantasia de que, cedo ou tarde, Saddam voltará para restabelecer a hegemonia sunita em um Iraque livre da ocupação. E, desde já, enquanto se aguarda o julgamento do recurso do réu, o ódio entre as facções etno-religiosas do país terá um foco adicional de exacerbação.

Os xiitas e curdos querem Saddam morto pelas mesmas razões por que os sunitas o querem vivo: para dar alento às suas pretensões políticas. Ou seja, se a sentença de morte se consumar, pouco restará do caráter pedagógico de que se imaginava dotá-la. Ela será percebida, até pelos iraquianos que a desejam, menos como um ato de justiça de um Estado democrático que como expressão da violência que a tantos iraquianos, de todos os grupos, parece ser a única forma de lidar com as próprias diferenças - e com o invasor.