Título: Espiões x espiões: a CIA controlada
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/05/2006, Internacional, p. A14

A renúncia de Porter Goss depois de 18 meses tentando dirigir a Agência Central de Inteligência (CIA) e a nomeação do brigadeiro Michael Hayden para assumir seu lugar tornam evidente algo que na verdade aconteceu há um ano: a CIA, como a conhecemos por 50 anos, não existe mais.

Outrora a principal organização de inteligência americana, a agência foi rebaixada para uma unidade operacional e de serviços de apoio ao Escritório do diretor de Inteligência Nacional, órgão comandado por John Negroponte que cresce rapidamente.

A CIA costumava coordenar, redigir e assinar toda "informação de inteligência nacional concluída". Não mais. O diretor da CIA costumava presidir as reuniões dos chefes das numerosas organizações que formam a comunidade de inteligência. Não mais. A CIA costumava ter a palavra final em muitos aspectos da distribuição de tarefas de inteligência. Não mais. A última atribuição da CIA a cair foi a da responsabilidade pela informação do presidente. Agora esta função pertence a Negroponte, com seu orçamento de US$ 1 bilhão e seus 1.500 funcionários.

O que finalmente rebaixou e esvaziou a CIA, depois de décadas de guerra burocrática em Washington, foi a perda de apoio onde ele era mais importante: a Casa Branca de Bush recusou-se a assumir responsabilidade pelas duas grandes falhas de inteligência que levaram o Congresso a reorganizar nossos serviços.

A primeira falha atribuída à agência foi a incapacidade de evitar os ataques do 11 de Setembro. Na verdade, a CIA (além de outros órgãos) avisou a Casa Branca várias vezes, nos primeiros oito meses de 2001, que um ataque ocorreria, apontando até sua origem, mas o governo Bush não fez nada. Por um mecanismo de psicologia coletiva, a inação da Casa Branca foi ao mesmo tempo relevada e perdoada pelo público, enquanto a CIA (além de outros órgãos) foi severamente repreendida por não ter previsto o dia e a hora dos ataques.

A segunda falha foi a avaliação - "com alto grau de convicção" - enviada pela CIA ao Congresso em outubro de 2002 de que o Iraque avançava ativamente em programas de armas de destruição em massa. Mas esta conclusão foi na verdade arrancada da agência pela Casa Branca e pelo Pentágono. Analistas da agência que trabalhavam na questão acreditavam que Saddam tramava algo, mas sabiam que suas evidências eram escassas e ambíguas. E muitos de seus superiores conheciam provas em contrário e as omitiram.

Todos na CIA - a começar por George Tenet, então o diretor - sabiam que a agência não poderia dizer aos inspetores das Nações Unidas onde encontrar qualquer coisa num período de meses. A CIA sabia que não sabia que tipo de programa de armas o Iraque realmente desenvolvia e, não fosse a pressão da Casa Branca, os analistas teriam redigido uma avaliação de inteligência refletindo suas incertezas (vale a pena observar que a Comissão de Informações do Senado, apesar de sua promessa, tem relutado abertamente em examinar a fonte da pressão pela divulgação de dados de inteligência alarmantes sobre armas ou como a Casa Branca fez uso delas).

O presidente Bush poderia ter assumido responsabilidade pelas duas falhas. Poderia ter seguido o exemplo do presidente John F. Kennedy, que assumiu a culpa pela desastrosa tentativa da CIA de desembarcar um exército rebelde em Cuba em 1961. Em vez disso, o governo ocultou quanto pôde a existência dos avisos pré-11 de Setembro, continuou a insistir, por muitos meses depois de iniciada a guerra no Iraque, que as armas ilegais de Saddam Hussein ainda poderiam aparecer e bloqueou toda investigação oficial sobre seu papel no exagero das escassas informações de inteligência disponíveis.

A responsabilização da CIA por essas falhas levou Porter Goss ao comando. Sua primeira tarefa era pôr fim ao que a Casa Branca considerava uma falta de lealdade à política governamental. Essa suposta deslealdade assumiu duas formas: vazamento de análises de inteligência antes da guerra no Iraque prevendo problemas que a Casa Branca ainda hoje tenta subestimar; e relatórios de campo pessimistas que contradiziam os auspiciosos anúncios de progresso feitos pelo Pentágono.

Goss, no entanto, encontrou dois grande obstáculos: a resistência da CIA a consertar algo (coleta e análise de inteligência) que na verdade não estava avariado; e a desmoralização de suas fileiras na subordinação ao escritório do diretor de Inteligência Nacional.

Historicamente, a clientela da CIA era de um só homem - o presidente. Quando sua primazia na função de informar a Casa Branca foi tirada, a agência na prática foi avisada que, dali em diante, falaria sozinha.

Além disso, num nível puramente humano, é evidente que Goss irritou praticamente todo mundo na CIA. Renúncias em massa privaram a agência de funcionários de experiência e talento, até que a Casa Branca - e Negroponte - aparentemente concluíram que estava na hora de Goss se retirar também.

As tarefas do próximo diretor da CIA serão aquelas não concluídas por Goss: renovar o orgulho e o entusiasmo da agência, apesar do papel reduzido e do status rebaixado; elevar o moral de analistas de inteligência que sabem que os responsáveis pelas decisões políticas estão lendo documentos do escritório de Negroponte; e recuperar a capacidade da diretoria de operações da agência de recrutar espiões, infiltrar-se em organizações hostis e montar operações clandestinas.

Ao mesmo tempo, o próximo chefe da CIA terá de proteger a agência da intromissão determinada do secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, que vem reforçando a capacidade do Pentágono de recrutar espiões e realizar operações secretas, o que, em sua opinião, não requer o mesmo tipo de supervisão imposta por lei às atividades da CIA.

Pode ser que a Casa Branca tenha escolhido Michael Hayden, um brigadeiro, que agora trabalha como vice de Negroponte e chefiou a Agência de Segurança Nacional (NSA) por sete anos, na esperança de que sua patente o fortaleça em disputas por influência com os militares. Em outros aspectos, porém, o brigadeiro Hayden parece uma escolha estranha, destinada a ter problemas no processo de confirmação.

O maior problema de Hayden pode ser o fato de ele ter criado e ajudado a ocultar um programa de escuta em grande escala da NSA sobre americanos, ainda ilegal aos olhos de muitos. Ou talvez os senadores deixem isso de lado e se voltem para a falta de experiência de Hayden em dirigir um serviço de espionagem clássico, do tipo que a CIA deve ser - novamente.

A melhor maneira de recrutar espiões não é com uma mentalidade de executivo, concentrada na economia e na produtividade. A direção de operações secretas requer capacidade e sensibilidade para julgar pessoas, para evitar problemas. Se a experiência e o tato em questões de inteligência fossem as qualidades mais importantes esperadas do próximo diretor, o brigadeiro Hayden estaria no fim da lista. O caminho no Senado será difícil.

Vários republicanos também não querem dar o cargo a um militar, ou a este oficial em particular. Mas alguém vai ficar com o cargo e esse alguém não chegará a lugar nenhum tentando "reverter o curso da agência", fazendo com que ela seja o que foi outrora - a principal organização de inteligência americana. Esta função agora é do escritório do diretor de Inteligência Nacional.

Provavelmente, o próximo diretor da CIA poderá, no máximo, fazer com que todos voltem ao trabalho, enquanto lembra o pessoal da agência de que é uma honra levar a culpa e assumir as conseqüências e, da próxima vez, o diretor de Inteligência Nacional terá de fazê-lo.