Título: A campanha dos caciques
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2006, Espaço Aberto, p. A2

Não há crime nem pena sem lei anterior que os defina (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege). Por essa lição latina, o Brasil ocupa um dos mais altos patamares do edifício legislativo mundial. Afinal, somos regidos por mais de 80 mil leis ordinárias (federais, estaduais e municipais) e cerca de 1,6 milhão de normas regulamentares (portarias, instruções, atos normativos, ordens de serviço e pareceres normativos) nas três esferas da Federação, algumas conflitantes ao extremo. Ainda por este entendimento, com tantas leis seríamos, por excelência, o território da criminalidade. E, se a lei fosse aplicada com rigor, poderíamos orgulhar-nos de dar ao mundo um bom exemplo de civilização. Como não somos um povo chegado à ordem e à disciplina, a imagem de país bárbaro impera. Para complicar o cipoal legislativo há leis que geram efeito contrário ao que pretendiam. Veja-se essa nova Lei Eleitoral, a de nº 11.300/06, que modificou a Lei 9.504/97 com o objetivo de reduzir gastos de campanha e controlar recursos eleitorais. As restrições às formas de divulgação eleitoral contribuirão para tornar a campanha deste ano uma das mais corrompidas de nossa História.

A minirreforma eleitoral abriga as duas modalidades do nosso sistema: a majoritária, para a Presidência da República, governos estaduais e Senado; e a proporcional, para a Câmara dos Deputados e as Assembléias Legislativas. Pelo número restrito de candidatos, o pleito majoritário assume grande visibilidade, propiciando aos contendores ampla exposição pública. A campanha proporcional, dada a quantidade de candidatos a deputado estadual e federal, restringe a aparição dos participantes - não mais que rápidos segundos nos 45 dias de mídia eleitoral. A defasagem entre as duas campanhas tem sido atenuada por produtos de caráter publicitário de que dispunham candidatos proporcionais para se comunicar com o eleitor - propaganda via outdoors, camisetas e bonés -, hoje proibidos.

A intenção da nova lei é a de moralizar padrões eleitorais. Não conseguirá. Expliquemos. O Poder Legislativo é composto por três grandes categorias de parlamentares: caciques, operadores e legisladores. Os primeiros exercem poder de mando sobre bancadas e se postam nas cúpulas partidárias; os segundos encarnam o mandato como propriedade e a política como profissão, não como missão, fazendo o jogo dos chefes e formando massa de manobra nas votações; os terceiros constituem o grupo legislador, em geral composto por especialistas, que se empenham nas comissões técnicas para defender projetos de interesse do País, a partir da defesa de causas de grupos organizados. Os caciques, que dão o tom geral da orquestra, somam em torno de 15%; os operadores, que fazem negócios, alcançam 50% dos 513 deputados; e os chamados parlamentares de opinião ficam em torno de 35%.

O último grupo, de perfil mais consciente e comprometido com as demandas sociais, enfrentará grandes dificuldades para se eleger. A ajuda tradicional de patrocinadores vem geralmente na forma de instrumentos para propagar seu trabalho. Agora vê-se tolhido pela nova Lei Eleitoral, inspirada na meta de "moralização da campanha". Não contando mais com as formas que usavam - outdoors, camisetas, bonés - e lhes permitiam estabelecer ligação com o eleitor, terão seus colégios invadidos por candidatos do segundo grupo, que dispõem de polpudas reservas. São estes, sem dúvida, os mais beneficiados pela nova disposição. Os caciques continuarão a usar as máquinas partidárias, dispondo sobre a visibilidade nos programas eleitorais. Eles e os operadores, que controlam, não terão dificuldade para cooptar apoios à moda antiga. No périplo que já se inicia em alguns Estados, começam a atrair para os currais a banda A (prefeitos, vereadores e lideranças ativas) e grupos da banda B (ex-prefeitos e oposicionistas). A fome encontra-se com a vontade de comer. Essa é a radiografia da composição parlamentar que se esconderá por baixo do tapete, escapando das proibições.

E a fiscalização? A Justiça Eleitoral é leniente, os juízes não falam a mesma língua e a lupa é embaçada pela sujeira de conveniências e interpretações dúbias. A legislação proíbe ao candidato fazer doação em dinheiro, além de troféus e prêmios de quaisquer espécies. Quem duvida que a norma cairá no cemitério das letras mortas? Sob esse prisma, é inevitável a conclusão: a recente reforma eleitoral vitamina o caixa 2 das campanhas e reforça o poder dos caciques. A economia de recursos de algumas áreas será fatalmente desviada para cooptação direta, mão para mão, bolso para bolso. Se a proibição de showmícios é algo elogiável - afinal, é uma forma matreira de engabelar as massas -, os "recursos artísticos" serão desviados para audiências que preferem o som da grana. Dedução à vista: a tão ansiada renovação do Parlamento não ultrapassará a histórica margem dos 2/3. A nova lei ingressa na atualidade pela via torta do fisiologismo, cujos traços ganham, a cada dia, cores vivas.

A desfaçatez não tem limites. A vergonha já não causa rubor na face de políticos. Pedro Álvares Cabral, no lugar onde se encontra, explica a insistentes interlocutores como pressentia que o país que descobriu iria ser a pátria-mãe do fisiologismo. Vamos ao relato. "Ao aportar, na belíssima baía de Porto Seguro, desci da nau capitânia ostentando meu traje de gala, cheio de medalhas de ouro no peito. De repente, vi 20 homens pardos, todos nus, sem nada que cubra suas vergonhas, setas armadas, cordas tensas, correrem em minha direção sob o comando do cacique. Quando este, de olhar concupiscente, contemplou meu traje de capitão-mor, meu chapéu de penacho, os anéis de rubis, fez um gesto ao qual os índios retribuíram com gritos de saudação à tripulação." Selava-se, ali, a adesão ao descobridor. Germinava ali a semente do caciquismo que explica, por exemplo, a corrida dos caciques José Sarney e Renan Calheiros, na semana passada, ao presidente Lula, nem bem o velho PMDB sepultara a candidatura própria à Presidência da República.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor-titular da USP e consultor político