Título: Ao eleitor, o vôo cego
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2006, Notas e Informações, p. A3

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) contra a vigência, já este ano, da emenda constitucional que aboliu a regra da verticalização - pela qual as coligações eleitorais nos Estados devem reproduzir as que se fizerem no plano federal - poderá produzir um efeito colateral benéfico, julgue-se como se queira o mérito da questão. O Supremo Tribunal Federal remeteu para o pleito de 2010 o fim da verticalização, sob o argumento de que nem mesmo uma emenda na Carta pode contrariar o seu artigo 16. Este estipula que as normas de uma eleição devem estar definidas no mínimo 12 meses antes de sua realização.

Quem sabe a jurisprudência firmada impeça que se aplique à campanha por se iniciar o projeto aprovado dias atrás na Câmara dos Deputados. Entre outras enormidades, o texto retira da Justiça a prerrogativa de fixar um teto para os gastos eleitorais, descarta a obrigatoriedade de os partidos divulgarem de imediato na internet as doações recebidas e - aberração das aberrações - proíbe a divulgação de pesquisas nos 15 dias anteriores ao pleito. A proposta voltará ao Senado, onde se originou, em razão das modificações que sofreu. Mas, se o pior prevalecer ainda assim, é possível que o estrago seja pelo menos adiado.

Pois se espera que o Supremo Tribunal Federal, caso chamado a se manifestar sobre a lei, depois de promulgada, considere que o princípio da anualidade em matéria eleitoral vale também para inovações como essas. No entender dos seus defensores, dado que não alteram o regime jurídico das eleições, não estariam sujeitas à quarentena. De todo modo, mais uma vez os políticos não se pejaram de legislar em causa própria.

No projeto eleitoral, os interesses partidários exibiram todo o seu vigor. Graças a isso, tudo indica que cada legenda ficará livre para dizer quanto pretende gastar com os seus candidatos - do caixa 1, bem entendido. Ao retirar da Justiça a atribuição de fixar um teto único, os deputados a delegaram a uma comissão da própria Câmara, que terá de fazê-lo até 10 de junho. Se não o fizer, como se espera, cada sigla gastará o que bem lhe aprouver. Outro retrocesso - como se não tivesse existido a lambança vinda à tona no ano passado - diz respeito à chamada transparência contábil das campanhas.

O texto original, de autoria do senador pefelista Jorge Bornhausen, mandava os partidos publicar na internet diariamente os valores recebidos e os nomes dos doadores. Ficou que a prestação eletrônica de contas se dará apenas a cada 30 dias e sem a identificação de nomes. (O sigilo, em si, parece aceitável, levando em conta que ele cessa, por força de lei, um mês depois das eleições.) Sintomaticamente, é o caso de dizer, se dependesse do Partido dos Trabalhadores não haveria prestação alguma de contas no curso da campanha. Mas o destaque nesse sentido foi rejeitado pelos líderes de todas as demais bancadas - o mínimo que deles se poderia esperar.

Já o veto à publicação de pesquisas a partir de 15 dias antes do pleito atropela os princípios constitucionais da liberdade de informar e do direito de ser informado.

Nada justifica a mordaça. Ela se explica pela conveniência dos candidatos de poderem cantar vitória na reta final da campanha sem serem contestados por dados objetivos de conhecimento público.

Há quem argumente que as pesquisas podem induzir o eleitor a não votar estritamente conforme as suas convicções. Falso. Ciente de que o seu candidato ideal trava uma batalha perdida, o eleitor poderá ou votar nele, mesmo assim, ou em outro nome, este sim competitivo, seja por julgá-lo a segunda melhor alternativa, seja para tentar impedir a vitória de um terceiro, a seu juízo o pior. O voto útil, em suma, é um voto consciente e racional como se possa desejar.

Fala-se também em manipulação de resultados. É ignorar que concorrência entre os institutos sérios, responsáveis pelas pesquisas mais divulgadas, e a estrita legislação a que devem obedecer as sondagens tornam essa possibilidade negligível.

De resto, pesquisas continuarão a ser feitas até a undécima hora. Mas só para servir aos candidatos e suas coteries - promovidos a detentores de informação privilegiada. Ao eleitor, cidadão de segunda classe, o vôo cego.