Título: A absolvição do cel. Ubiratan
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2006, Notas e Informações, p. A3

É apenas natural que a chacina de 111 presos na Casa de Detenção do Carandiru, em outubro de 1992, tenha tido clamorosa repercussão não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro. Com toda certeza o que passou a ser chamado de "Massacre do Carandiru" jamais sairá dos compêndios da história carcerária e policial dos povos, como uma das mais desastradas operações de repressão a conflitos ou revoltas dentro de estabelecimentos prisionais. Eis por que tudo o que diga respeito àquela tragédia ocorrida há 13 anos - sejam os depoimentos testemunhais dos acontecimentos, as cenas do filme sobre o episódio, o julgamento dos participantes da invasão, começando pelo que comandou a operação, o coronel da reserva da Polícia Militar e atual deputado estadual Ubiratan Guimarães - desperta sempre uma radicalização acirrada de posições que não permite que se consiga perceber um mínimo de isenção no julgamento das reais responsabilidades dos que protagonizaram aquelas terríveis e macabras cenas.

Como não poderia deixar de ser, a decisão do Tribunal de Justiça, tomada por 20 votos a 2 dos desembargadores que compõem o Órgão Especial, anulando a condenação, sentenciada em 2001 no julgamento realizado pelo 1º Tribunal do Júri, de Ubiratan Guimarães, por autoria em 102 homicídios e 5 tentativas de homicídios, tem provocado as mais violentas manifestações de protesto, especialmente de ONGs nacionais e estrangeiras dedicadas à defesa dos direitos humanos.

Diga-se, preliminarmente, que as pesadas acusações contra o Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de que aquela corte teria realizado um julgamento "político", são destituídas de qualquer fundamento. O Tribunal de Justiça paulista é considerado um dos mais qualificados - senão o mais - entre os Tribunais estaduais do Brasil. Ademais, a decisão em questão foi proferida pela quase unanimidade dos desembargadores mais antigos e presumidamente mais experientes do Tribunal.

Deixemos aqui de lado considerações técnicas sobre o mérito desse julgamento, ou a argumentação defensiva de Ubiratan Guimarães, quanto ao fato de, no julgamento de 2001, os jurados, por 6 votos a 1, haverem aceitado a tese de que o coronel agira "no estrito cumprimento do dever", durante a invasão, mas em quesito posterior, por 4 votos a 3, admitiram ter ele cometido "excessos na ação", o que significaria incongruência bastante para a anulação de uma pesada condenação (a pena de 632 anos). Mais importante seria lembrar dos indícios do total desnorteamento e despreparo da tropa invasora do presídio, que não teria recebido a ordem expressa de matar prisioneiros rebelados, mas ao entrar em pânico com a situação defrontada, praticou toda a sorte de barbaridades.

Uma evidência disso deixou de ser comentada em toda a polêmica que se travou sobre a tragédia, nos últimos 13 anos. No dia daquela ocorrência, o respeitado repórter policial Percival de Souza dava conta, em matéria transmitida por uma rádio, que os policiais que invadiram o Carandiru foram ameaçados, por prisioneiros portadores de HIV, de lhes serem arremessados latas e plásticos com sangue contaminado. Imagine-se a reação de pânico dos policiais, numa época em que muito pouco se sabia sobre os riscos de contaminação da doença.

Na verdade, todas as informações emitidas a respeito da tragédia, como não poderia deixar de ser - inclusive pela conotação unívoca da expressão "Massacre do Carandiru" -, se concentraram na absurda mortandade de mais de uma centena de seres humanos, o que, por si, ultrapassa em comoção quaisquer outras considerações fáticas a respeito do assunto. No filme Carandiru, do cineasta Hector Babenco, ficou claro - para quem o assistiu depois de ter lido a obra Estação Carandiru, do médico Dráuzio Varella, na qual teria se inspirado - que toda a rica experiência humana coletada pelo profissional da medicina, que por anos convivera com os presidiários do Carandiru, serviu apenas de pretexto para a sanguinolenta e escabrosa parte final do filme, com verdadeiras cachoeiras de sangue vertendo, dantescamente, pelas escadarias. Em nenhum momento prevaleceu a mínima objetividade, que pudesse lançar luzes sobre as versões das duas partes envolvidas - a dos presos e a dos policiais.

Mas uma Corte de Justiça não pode escapar a essa mínima objetividade.