Título: O Brasil a conta-gotas
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/01/2006, Espaço Aberto, p. A2

Houvesse conhecido o Brasil e sido instado a falar sobre política, o filósofo canadense Marshall McLuhan bem que poderia classificar nossos homens públicos de acordo com seu mais famoso dito: o meio é a mensagem. Isso mesmo. Entre nós, o político é meio e mensagem. A metáfora ganha mais peso quando aplicada a postulantes a cargos públicos. A mensagem é frágil quando se trata de candidatos nas searas municipal e estadual. E continua não sendo substantiva quando os interessados postulam o Olimpo ou a ele querem ascender. Basta avaliar os últimos olimpianos que nos governaram. Qual foi seu ideário? Que ações de envergadura marcaram os governos pós-ditadura militar? Vagamente, alguém poderá recordar: Sarney inaugurou o ciclo da redemocratização e confiscou o boi no pasto por ocasião do Plano Cruzado; Collor fez o plano de abertura da economia, mas confiscou a poupança; Itamar inaugurou o plano da moeda estável, o Real, consolidado no governo de Fernando Henrique, que também organizou o programa Avança Brasil. Cada uma dessas passagens teve importância, gerando certo impacto na vida econômica. Nenhum, porém, teve a magnitude de um plano como o "50 anos em 5", de Juscelino Kubitschek, responsável pelo crescimento do País a uma taxa de 8,1% ao ano.

Qual a razão? O passado permitia vôos mais altos que o presente? Como o País não tinha infra-estrutura econômica, o que se fazia ganhava mais realce? É até provável. Mas nada supera a hipótese de que o Brasil, nas últimas décadas, inaugurou um ciclo com duas vertentes antagônicas: definhamento do poder das idéias e fortalecimento do personalismo. Partidos sem doutrina, declínio das ideologias, frágil desempenho dos políticos, desmotivação dos participantes e forte incremento dos grupos de interesses contribuíram para a personificação do poder nas democracias representativas ocidentais. Ao saldo de fatores negativos se soma nossa cultura personalista ("você sabe com quem está falando?"), resultando numa política em que os fulanos são mais importantes que as idéias. Os atores arquivam os programas e passam a usar os espaços vazios das ideologias com questões corriqueiras.

E assim o Brasil vai sendo administrado a conta-gotas. Não há visão de longo prazo. Quando um charmoso Kubitschek reaparece nas telinhas de TV, alguns, como o presidente Lula, com ele se identificam, igualando-se a estadistas. Pobres coitados. Teimam em cometer asneiras. Desconhecem que o Brasil teve ciclos de continuidade. Naqueles tempos, a imagem de antecessores não era jogada no lixo. Getúlio Vargas, ainda no Estado Novo, plantou os primeiros alicerces do desenvolvimento. Costurou a malha social, com as leis trabalhistas, o salário mínimo, a Previdência. Na campanha de 1950, correndo os fundões do País, Vargas organizou um conjunto de obras com foco nas realidades estaduais. E assegurava a plena realização de um "programa racional, realista, construtivo e patriótico". Não fazia concessões à demagogia: "Não vos devo prometer senão o que posso realizar." Juscelino pegou o bonde e arrumou os trilhos, a partir da estratégia de fortalecer a industrialização do Sudeste e abrir as fronteiras nacionais.

De lá para cá, o Brasil agigantou demandas e apequenou soluções. É bem verdade que o experimentalismo encorpa a nossa genética. Entre 1930 e 2005, por exemplo, o País teve 17 planos de desenvolvimento. Um dos últimos foi o Avança Brasil, da era FHC, mal formulado sob o aspecto estratégico. É a crítica de um dos maiores expoentes nacionais na área do desenvolvimento auto-sustentado, o engenheiro Eliezer Batista. Errou ao trocar a visão federativa pela visão regionalizada, ou seja, pensar o Brasil a partir de regiões, em vez de Estados, como fez Getúlio, além de substituir a visão econômica pela ótica interdisciplinar, no caso, a tentativa de contemplar aspectos sociais, econômicos, tecnológicos e gerenciais. O programa tornou-se excessivamente burocrático, quando, inserido no Plano Plurianual, saiu dos 42 projetos iniciais para alcançar o número de 380. Massa incontrolável. Já o ciclo Lula é uma completa improvisação. Mais parece um governo de amadores. A colcha de retalhos começou com o tecido roto do marquetizado Fome Zero. Hoje, a ênfase é o Bolsa-Família, que engole volumosas verbas e vomita densa adjetivação. Agora a administração improvisa com o Programa Tapa-Buraco eleitoral que consumirá R$ 0,5 bilhão em remendos que vão durar até a próxima estação. Quanto aos projetos hidrelétricos, só Deus sabe quando estarão prontos.

No momento em que pré-candidatos começam a se preparar para dizer o que pensam sobre o Brasil, urge aprender a lição do passado. Geraldo Alckmin reúne um grupo de especialistas para fazer seu programa de governo. Não será mais um repeteco de planos burocráticos e longe da realidade nacional? Quem não se lembra da imensa mesa ao redor da qual técnicos renomados discutiam a realidade nacional, fazendo planos, programas, projetos, enquanto um Lula caracterizado de gerentão exibia, orgulhoso, a sua plêiade de notáveis? Onde ela está? Ou tudo não passou de firula do espetaculoso marketing que embalava o candidato petista como a maior esperança de toda a nossa História? O Brasil de Getúlio, de Juscelino e de figuras como Eliezer Batista, o território de 27 entes federativos, carece de um projeto de longo alcance regado pelo calor de todos os espaços. Será que continuaremos a ver uma Nação desenhada com os símbolos de dinheiro, juros, bolsas, déficits nominais, superávits primários, ajustes fiscais e cargas tributárias?

No Sul e no Centro-Oeste, a estiagem mata as esperanças de produtores rurais. No Sudeste, a chuva deixa milhares sem teto. No Norte, as queimadas consomem o oxigênio do pulmão da humanidade. Mas os timoneiros não têm olhos para grandes distâncias. Conduzem o trem muito devagar de uma estação a outra.