Título: Os carrões do STJ e a MP 232
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

No dia 10 este jornal noticiou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vai gastar R$ 5,42 milhões para renovar os carros de uso dos seus ministros, adquirindo, ao custo individual de R$ 146,5 mil, 37 autos do modelo Ômega, da General Motors, fabricados na Austrália. O mesmo modelo é usado por outras autoridades, como o presidente Lula e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

A notícia saiu num canto de página, mas merece maior destaque, pois é sintomática do desprezo com que se trata o dinheiro do contribuinte para sustentar mordomias descabidas e altamente custosas. As justificativas relatadas pela matéria são simplesmente ridículas, com o STJ paradoxalmente afirmando que seu grande gasto representará economia de R$ 367,8 mil por ano nos próximos dois.

Como? Tendo como fonte o STJ, a notícia desfila um tremendo besteirol de justificativas em que se destacam:

"A montadora pediu inicialmente R$ 148,57 mil por veículo, mas o valor foi reduzido em 1,39% na negociação";

"Com a substituição da frota em uso há oito anos não haverá gastos com peças em manutenção nos próximos dois anos..." (o prazo de garantia, mas, e depois?), pois "... só o hidrovácuo... custa R$ 6 mil cada... um disco de freio dianteiro custa R$ 2 mil e o trilho do banco do motorista, R$ 6 mil."

Ora, é fácil perceber que de imediato e sem fazer muita conta, inclusive da manutenção muito mais barata, o STJ economizaria R$ 2,71 milhões adquirindo um dos modelos dos carros nacionais mais luxuosos, que custam perto da metade de um desses Ômegas. Aliás, eles dão também ao cidadão brasileiro um toque australiano ao transformá-lo num contribuinte-canguru assaltado no seu bolso, tendo de se virar e pular para pagar a maior carga tributária do mundo para países de nível equivalente de desenvolvimento.

A notícia finda com a informação de que o STJ acrescenta que "... a compra é autorizada pela Lei de Diretrizes Orçamentárias para os ministros de Estado, do STF e dos tribunais superiores". Ora, não me consta que essa lei mande comprar Ômegas australianos, pois ainda não chegamos a esse ponto de irresponsabilidade fiscal, nesse caso restrita a quem decide uma aquisição como essa, infelizmente ainda ao largo de restrições legais e do senso republicano do bem comum.

Não bastassem esses maus exemplos que vêm de cima, inclusive do supremo mandatário, que também desfila num desses furos orçamentários australianos e no dano fiscal ainda maior causado pelo seu novo avião, há também razões para preocupação com novos e igualmente maus exemplos que também poderão vir de baixo. Não me refiro ao povão que anda a pé ou em precários transportes coletivos - que contrastam com esses carrões e com o avião que esse mesmo povo sustenta com os impostos que paga -, mas ao ganho de poder do chamado baixo clero da Câmara dos Deputados, obtido com a eleição do deputado Severino Cavalcanti para a presidência dessa Casa legislativa.

Na televisão e nos jornais de ontem vi muita gente a dar sofisticadas explicações para o resultado, em particular as que ressaltam infidelidades partidárias e traições de compromissos. Fico com uma mais simples: o homem prometeu aumento de salário aos eleitores, um argumento imbatível em face do mau caráter que assumem muitos de nossos "representantes do povo", prioritariamente preocupados em defender interesses pessoais, uma das razões principais sendo a sua eleição pelo sistema de voto proporcional, que praticamente os libera de efetivamente prestar contas a quem ingenuamente os elege.

Eleito, Cavalcanti reafirmou um de seus compromissos, o de lutar pela equivalência salarial dos congressistas com os ministros do STF, o que elevaria os salários dos primeiros de R$ 12.847 para R$ 21.500. Como recebem 15 salários por ano (sem contar mais dois por eventuais convocações extraordinárias), se vier esse absurdo o gasto adicional por ano e por deputado seria próximo do valor de um Ômega australiano, levando em conta essa referência comum em Brasília. Pode-se temer também que a equivalência com os ministros do STF ou mesmo do STJ alcance os meios de transporte. Aí, seria literalmente um Ômega australiano para cada deputado.

Nos mesmos jornais de ontem há a notícia de que mais de mil entidades e associações de prestadores de serviços articularam a Frente Brasileira contra a Medida Provisória (MP) 232 e realizaram uma grande manifestação em São Paulo. Essa MP seguiu a arraigada e perniciosa tradição governamental de persistentemente aumentar impostos, mas desta vez houve justificada reação, noutro indício de que a carga tributária brasileira está alcançando o insuportável.

A reação, contudo, precisa ser focada não apenas nessa ou noutra medida de aumento de impostos, mas principalmente nos gastos públicos. É a sua contínua expansão que leva a aumentos de tributos, a pretexto de gerar superávits elevados fiscais primários para pagar os juros de uma dívida crescente por conta do resultado fiscal que realmente interessa, o dos déficits nominais ou finais persistentes.

O que une o alto e o baixo clero de Brasília é essa incontida prática inspirada pela sua religião de gastar mais e mais de um dinheiro que não é deles, mas cuja sustentação com uma carga tributária tão alta já compromete o papel do setor público como facilitador do desenvolvimento econômico e social do País.

Assim, a reação contra a MP 232 precisa incluir uma Frente Brasileira contra a Irresponsável Expansão dos Gastos Públicos. No processo de aumento da carga tributária, como outras medidas na mesma linha essa MP é mais uma conseqüência dessa expansão do que uma causa atuando de forma independente.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), é pesquisador da Fipe-USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: roberto@macedo.com