Título: Carpideiras industriais
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/12/2005, Economia & Negócios, p. B2

A menos de uma reviravolta, a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), a ser realizada em Hong Kong entre 13 e 18 deste mês, parece fadada ao fracasso. O instinto de preservação da OMC tornará inevitável que uma tentativa de remendo ocorra em nova reunião ministerial a realizar-se nos próximos meses. Seria um esforço para salvar o cronograma inicial da Rodada de Doha e evitar dificuldades políticas com o seu adiamento além de 2006, especialmente nos EUA. O quadro de impasse está definido pela insuficiência das propostas de liberalização agrícola dos EUA e, especialmente, da União Européia. O Brasil, por seu lado, só mencionou cortes de tarifas industriais bastante modestos em relação às tarifas hoje aplicadas. Parte da falta de transparência das negociações da OMC tem que ver com o jogo de cena implícito nas propostas de desgravação. As economias desenvolvidas propõem cortes de tetos de subsídios agrícolas que implicariam redução muito modesta dos atuais níveis de subsídios, muito abaixo dos tetos acordados anteriormente. Países como o Brasil propõem cortes de tarifas sobre produtos industriais registradas na OMC, que teriam parco impacto sobre as tarifas atualmente aplicadas, que são muito inferiores às registradas. Além disso, cada lado tem claro que os produtos ¿sensíveis¿ serão excluídos de liberalizações significativas. Um corolário é que inexoravelmente negociações multilaterais futuras serão levadas à paralisia progressiva, pois o resíduo a liberalizar contém proporção crescente de itens ¿sensíveis¿.

No G-4 da OMC, o Brasil é interlocutor privilegiado dos EUA, da União Européia e da Índia e, de longe, o mais ardoroso defensor da liberalização agrícola. Estabeleceu-se natural polarização entre o Brasil, defensor da liberalização, e a União Européia, baluarte do protecionismo agrícola. Elementos tradicionais do arsenal protecionista estão sendo gradativamente brandidos. O comissário da União Européia para o Comércio tenta minimizar as críticas brasileiras à proposta agrícola européia insistindo que o Brasil não fez proposta adequada para bens industriais. Bruxelas tenta mobilizar os países em desenvolvimento que não são grandes exportadores agrícolas contra os proponentes da liberalização. O lobby agrícola europeu alega na última hora que a liberalização agrícola não vai reduzir a pobreza no Brasil, tese discutível e argumento irrelevante no contexto da OMC. Nada disso é surpresa. Afinal, a União Européia sempre sustentou que os produtores agrícolas eficientes se arvoram ¿o direito ilimitado de explorar as suas inegáveis vantagens comparativas¿ (artigo dos comissários Franz Fischler e Pascal Lamy, Financial Times, 31/3). O Brasil também enfrenta dificuldades para manter a unidade da coalizão do G-20, que teve sucesso em conter as propostas agrícolas insuficientes dos EUA e da União Européia em Cancún, em 2003, mas inclui países relutantes quanto a uma agenda agrícola positiva.

As dificuldades que enfrenta a liberalização agrícola não são apenas externas. No terreno interno, no Brasil, toma corpo a oposição a rodada que implique resultados substanciais. Os lobbies protecionistas tentam fazer prevalecer a tese de que qualquer redução tarifária atingiria decisivamente os interesses industriais e vendem a idéia da completa identidade entre interesses nacionais e interesses da indústria. Assim, o Itamaraty teria a missão impossível de obter nas negociações mais acesso a suas exportações agrícolas sem fazer concessões substantivas a seus parceiros comerciais. Se o Brasil quer concessões agrícolas, vai ter de fazer concessões quanto à proteção à indústria e em temas relacionados a regras. O problema é determinar qual a relação entre os cortes nas tarifas industriais e agrícolas. Seria razoável supor, dada a modéstia da liberalização agrícola na Rodada Uruguai, que as reduções fossem significativamente maiores na agricultura.

A defesa de um programa minimalista de liberalização tem levado à intensa mobilização dos velhos fundamentalistas da intervenção, verdadeiras carpideiras da proteção. Recrudesce a defesa de ampliação de ¿espaço para políticas ativas¿, aumenta o rufar de tambores na denúncia dos malefícios da desindustrialização. Num país de memória curta parece haver saudosismo dos tempos em que a participação das importações na oferta total beirava os 4% do PIB. Não se deve confundir desindustrialização com retração de setor industrial que cresceu à sombra de proteção alta e absoluta. O País pode adotar políticas de estímulo ao desenvolvimento tecnológico em setores de ponta sem propiciar carona aos demandantes estruturais de proteção, seja porque são ineficientes estruturais ou porque defendem lucratividade que seria erodida pela liberalização. Os argumentos que tentam defender a idéia de que a prioridade à liberalização agrícola corresponderia a uma volta ao passado primário-exportador não são convincentes. Não há futuro numa volta à proteção do passado.

O tamanho relativo dos grandes protagonistas torna atraentes propostas do tipo ¿algo por nada¿ na OMC. É dever de nossa diplomacia resistir a essas posições, idealmente por intermédio de coalizões que aumentem o poder de barganha do Brasil. Mas a estratégia de tentar copiar o que faz o outro lado, algo como olho por olho, ¿tit for tat¿, é irrealista, não é séria. Até agora o Brasil jogou bastante bem na OMC e acumulou credibilidade como defensor da liberalização agrícola, em contraste com o protecionismo dos desenvolvidos. Faz parte do jogo mercantilista na OMC minimizar os ¿custos¿ para o País em termos de reduções tarifárias que afetem a indústria. Mas é ilusão pensar que vai ser possível obter liberalização agrícola relevante sem concessões industriais que estejam além do jogo de cena.