Título: Agenda made in Argentina
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/12/2005, Notas e Informações, p. A3

O governo brasileiro tem mais uma oportunidade para enterrar a discussão sobre salvaguardas comerciais entre países do Mercosul - na prática, um dispositivo protecionista reivindicado por industriais argentinos e pelo governo do presidente Néstor Kirchner. Reunidos em Puerto Iguazú, para celebrar o Dia da Amizade, o presidente argentino e seu colega brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva adiaram para o começo do ano a solução do assunto.

Durante semanas, funcionários de Buenos Aires pressionaram pela assinatura de um acordo de salvaguardas na reunião dos presidentes, no dia 30 de novembro. Em algumas entrevistas, a data foi anunciada como certa.

No Brasil, representantes do governo federal tiveram reuniões com empresários industriais para discutir o assunto, Houve resistência do lado empresarial, mas a disposição de aceitar um acordo foi admitida mais de uma vez por fontes oficiais como forma de evitar conflitos desordenados.

Do lado argentino, os principais defensores da proposta eram o ministro da Economia, Roberto Lavagna, e o de Relações Exteriores, Rafael Bielsa. Ambos deixaram o governo há poucos dias. Isso parece explicar a disposição do presidente Néstor Kirchner de postergar um acordo sobre o assunto.

Oficialmente, o tema permanece no alto da agenda bilateral e consta do Compromisso de Iguazú assinado pelos dois presidentes na quarta-feira.

A combinação é descrita em linguagem convenientemente enrolada. Antes do fim de janeiro, os dois governos deverão concluir "um instrumento capaz de evitar o impacto dos desequilíbrios no comércio e assimetrias entre setores produtivos de ambos os países e promover a integração da produção e a expansão equilibrada e dinâmica do comércio bilateral".

A chave para decifrar o texto está nas palavras "desequilíbrios", "assimetrias" e "expansão equilibrada". Trata-se, em resumo, de criar mecanismos de proteção para setores produtivos da Argentina.

Com as salvaguardas, será institucionalizado, no Mercosul, um sistema de barreiras mais perigoso que aquele permitido pelas normas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Se tivesse de ser um sistema igual ou menos favorável ao protecionismo, não haveria motivo para criá-lo. Essa idéia representa, portanto, inequívoco retrocesso na integração comercial dos países da região.

Segundo alguns, o governo brasileiro nunca pretendeu de fato aceitar a proposta e apenas prolongou a discussão para evitar complicações diplomáticas. Mas a discussão se prolonga há muito tempo e funcionários brasileiros, em declarações públicas e em comentários condicionados ao anonimato, têm defendido mais essa concessão ao maior parceiro no Mercosul.

Se a idéia é realmente rejeitar a proposta, há, agora, uma boa oportunidade para isso. Mas o governo petista quase invariavelmente vem cedendo às pressões argentinas quando se trata de assuntos comerciais e ações diplomáticas conjuntas.

O Compromisso de Iguazú é um documento redigido principalmente de acordo com os interesses do governo do presidente Kirchner. Os dois presidentes prometeram, por exemplo, atuar conjuntamente para obter das instituições financeiras multilaterais condições favoráveis à "promoção de políticas de crescimento, emprego digno e inclusão social". Em português corrente, Brasília promete apoiar o governo argentino em suas negociações com o FMI. O Brasil cumpriu todas as cláusulas de ajuste e agora se dispõe a lutar ao lado de outro país para a adoção de regras mais confortáveis.

O presidente Lula comprometeu-se, além disso, a participar dos estudos sobre um gasoduto entre a Venezuela e a Argentina - assunto negociado inicialmente entre os presidentes Néstor Kirchner e Hugo Chávez.

Estes exemplos são mais que suficientes para evidenciar um fato: o governo brasileiro continua disposto a pagar um alto preço, em termos comerciais e diplomáticos, para atender às pretensões do parceiro do Sul. É difícil encontrar, em todo o documento, algum argumento para desmentir essa tese. O texto, segundo tudo indica, é um produto made in Argentina e importado sem salvaguardas políticas pelo Brasil.