Título: Saddam chega ao banco dos réus
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/10/2005, Internacional, p. A15

Começa hoje o julgamento do ex-ditador iraquiano e mais sete colaboradores acusados da morte de 143 curdos em 1982

O julgamento de Saddam Hussein começa hoje e, apesar da grande expectativa em alguns setores, muitos duvidam que o processo será mais que um mero espetáculo. Outros duvidam que a exposição do passado no tribunal contribuirá para a reconciliação dos grupos étnicos iraquianos. Na verdade, há temores crescentes de que o processo do déspota represente uma séria ameaça à estabilidade do Iraque pós-guerra. Afinal, o esforço em prol do respeito à lei está sendo conduzido num país onde a ilegalidade virou a ordem do dia.

De qualquer modo, o julgamento de Saddam, um "julgamento do século" que dará aos iraquianos a chance de acertar as contas com um ditador brutal e seus comparsas, pode de fato levar justiça às vítimas e servir de advertência para os déspotas mundo afora. "Isso é o mais importante", diz Ibrahim Hauramani, diretor do Museu Memorial de Halabja, inaugurado há dois anos pelo então secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell. "Queremos a chance de olhar esses criminosos nos olhos, de enviar uma mensagem a qualquer um que tenha cometido crimes similares."

As autoridades do Judiciário iraquiano anunciaram que o tribunal tratará do caso de Saddam, seu meio-irmão Barzan Ibrahim al-Tikriti, o ex-vice-presidente Taha Yassin Ramadan e outros cinco ex-funcionários do Partido Baath. O caso trata da execução de 143 homens e garotos e do seqüestro de outros 1.500 habitantes da cidade de Dujail, no centro do Iraque, onde Saddam escapou por pouco de uma tentativa de assassinato em julho de 1982 e, no mesmo dia, promoveu um julgamento criminal dos moradores.

A emissora de TV britânica Channel 4 desenterrou um vídeo feito por cinegrafistas de Saddam que mostra o ditador à beira de uma estrada selecionando homens para interrogatório depois da tentativa de assassinato. "Sou um membro do exército de nosso povo", balbucia um homem. Outro diz que estava apenas a caminho de interromper o jejum no mês do Ramadã. Pode-se ouvir a voz de Saddam na fita ordenando que seus homens os "separem e interroguem".

O caso de Dujail é inusual, pois inclui documentação completa do envolvimento pessoal de Saddam e da cadeia de comando que começa no topo do regime, passa pelo tribunal revolucionário e chega aos executores na prisão de Abu Ghraib.

O contrário acontece com os outros grandes casos a ser julgados depois: a expulsão, pelo regime de Saddam, de 200 mil curdos xiitas para o Irã até o início dos anos 80; o suposto massacre de 8 mil homens e garotos da tribo curda Barzani em 1983; a campanha "Anfal" contra a população civil curda durante os últimos anos da guerra Irã-Iraque; a repressão do levante xiita de 1991; e, no caso mais proeminente, o ataque a Halabja com gás venenoso em 1988.

Saddam "merece uma punição severa, a mais severa punição", disse o presidente americano, George W. Bush, comentando o julgamento, que pode ter implicações políticas para Washington e seus aliados dois anos e meio depois da invasão do Iraque.

O julgamento vai demonstrar que a controvertida campanha iraquiana livrou o país de um regime assassino, talvez até mesmo ofuscando a justificativa que os EUA e aliados usaram originalmente para a invasão, os erros do planejamento pós-guerra e o abismo no qual o país mergulhou. Para Bush, cujas políticas para o Iraque agora são reprovadas pela maioria dos americanos, o julgamento representa a esperança de apoio renovado.

O governo dos Estados Unidos gastou US$ 75 milhões nos preparativos para o julgamento. Quando as primeiras forças de ocupação americanas entraram em Bagdá, foram acompanhadas por funcionários do Departamento de Justiça dos Estados Unidos .

A equipe de promotores americanos ouviu 7 mil testemunhas, enquanto agentes do FBI recolhiam 2 milhões de documentos e arqueólogos e especialistas forenses descobriam centenas de valas comuns. Muitos deles ainda estão horrorizados com o que chamam de "campos da morte" do Iraque, fileiras e fileiras de corpos de mulheres e crianças, todas mortas por uma única bala acima da orelha esquerda, até mesmo mulheres grávidas.

O Tribunal Criminal Internacional, em Haia, não pôde assumir o caso porque, por estatuto, só deve julgar crimes cometidos depois de julho de 2002.

O cabo-de-guerra em torno de um tribunal especial operando sob mandato das Nações Unidas foi disputado como uma extensão da controvérsia sobre a guerra no Iraque. E a insistência do primeiro-ministro iraquiano interino, Iyad Allawi, de que o tribunal pudesse impor a pena de morte suprimiu rapidamente o apoio internacional ao órgão, apoio que até os Estados Unidos queriam.

O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, proibiu os juízes de Haia de ajudar no treinamento dos colegas iraquianos. Já a organização pró-direitos humanos Human Rights Watch recusou-se a entregar as evidências que reunira contra o regime de Saddam.

No fim, os Estados Unidos inventaram seu próprio órgão, o Tribunal Especial Iraquiano, cujas regras de procedimento são uma controversa mistura de normas internacionais e leis criminais iraquianas, incluindo a condenação à forca, que precisa ser executada dentro de 30 dias depois da imposição da pena.

Organizações pró-direitos de vítimas impuseram outro obstáculo aos juízes iraquianos do tribunal. Elas pedem que o tribunal trate da questão dos governos ocidentais que no passado apoiaram Saddam, alimentando seu regime com armas e inteligência. Os advogados de Saddam também estão ansiosos para convocar como testemunha o secretário da Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, que se reuniu com o ditador em 1983.

O fato de seu testemunho ser improvável motiva reclamações - até mesmo do ministro da Justiça iraquiano, Abdel Hussein Shandal - de que os americanos exercem influência demais sobre o julgamento. "Parece que existem muitos segredos que eles querem esconder", afirmou Shandal.