Título: Dois meses de greve
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/08/2005, Notas e Informações, p. A3

A greve dos servidores do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) completou dois meses e já é a terceira mais longa ocorrida no órgão, em dez anos. Nesse período, sempre a pretexto de reivindicar reposição de perdas salariais, a corporação cruzou os braços sete vezes ¿ a greve mais curta, realizada em 1995, durou 34 dias, e a maior, deflagrada em 2001, demorou 111 dias. No total, são 440 dias, somando quase um ano e três meses de paralisia. O aspecto mais preocupante, na atual greve, é a incapacidade do governo de enfrentá-la com um mínimo de autoridade.

No início, as negociações ficaram a cargo dos ministros responsáveis pela área ¿ Romero Jucá (Previdência), Ricardo Berzoini (Trabalho) e Humberto Costa (Saúde). Mas, como suas demissões já eram dadas como favas contadas, eles não foram aceitos como interlocutores pelos grevistas.

Com isso, a responsabilidade pelas negociações ficou a cargo do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Contudo, na mesma semana em que propôs pequeno aumento na gratificação por desempenho dos funcionários da Previdência e ameaçou cortar o ponto dos grevistas, seu nome foi incluído entre os deputados que teriam recebido recursos de origem duvidosa no pleito de 2002, o que minou sua autoridade. Com isso, o novo ministro do Planejamento, Nelson Machado, que tomou posse há duas semanas, tornou-se o negociador pelo governo.

Além da fraqueza política do governo, os grevistas têm outro importante trunfo. Como até hoje as greves no setor público não foram regulamentadas, como determina a Constituição, a possibilidade da corporação sofrer alguma punição rigorosa é remota. Embora o Ministério Público Federal tenha ajuizado uma ação pedindo o restabelecimento de todos os serviços do INSS, a Justiça Federal se limitou a obrigar os grevistas a manter em funcionamento algumas agências, sob pena de multa diária.

Mas, como lembra o vice-chefe da Procuradoria-Geral do Trabalho, Otávio Lopes, essa medida não resolve os problemas sociais causados pela paralisação no INSS. ¿A falta de lei regulamentar provoca um ambiente selvagem, onde não há regras nem limites¿, diz ele.

Nesse ambiente selvagem, as vítimas são sempre cidadãos inocentes e impotentes. No caso do INSS, elas envolvem idosos,viúvas, órfãos e gestantes. Só em São Paulo, mais de 2 milhões de pessoas já deixaram de ser atendidas pelo INSS. Desrespeitadas em sua dignidade e seus direitos, essas pessoas são usadas por grevistas como escudos humanos, na expectativa de terem suas reivindicações atendidas quanto maiores forem os problemas que criarem para a sociedade.

Trata-se de uma estratégia moralmente repulsiva, pois o maior prejuízo que o funcionalismo pode sofrer, quando cruza os braços, é não ter seus pleitos atendidos. Ao contrário do setor privado, onde a paralisia do trabalho prejudica tanto as empresas, que vendem menos, quanto os empregados, que perdem os dias parados e podem ser demitidos, no âmbito da máquina governamental ela penaliza apenas a sociedade. ¿O administrador público não é atingido pelos efeitos da greve, mas só a população. A greve não afeta quem pode resolvê-la, seja o presidente da República, o ministro, o governador ou o prefeito. Os servidores não têm muito a perder, pois não podem ser demitidos¿, afirma Lopes.

Essa injustiça já poderia ter sido eliminada se o Executivo e o Legislativo tivessem interesse em regulamentar a greve dos servidores públicos. Em 2004, durante a paralisia de policiais federais, o governo prometeu dar um passo nesse sentido. Mas, como o PT sempre teve suas bases eleitorais no funcionalismo, capitulou diante das resistências corporativas e não cumpriu sua promessa. O máximo que ousou foi incluir, na proposta de emenda da reforma sindical, a negociação coletiva no setor público.

Como uma emenda à Constituição tem de ser votada em dois turnos na Câmara e no Senado, e precisa três quintos dos votos favoráveis para ser aprovada, na prática o governo fez jogo de cena, pois ele sabe que, com a CPI dos Correios funcionando, tão cedo a reforma sindical não terá a menor condição de ser submetida ao plenário. E a greve do INSS poderá se prolongar por tempo indeterminado, agredindo os mais elementares direitos dos cidadãos brasileiros.