Título: A Constituição e o Direito Civil
Autor: Miguel Reale
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/06/2005, Espaço Aberto, p. A2

Um dos fatos jurídicos mais relevantes de nosso tempo é a constitucionalização do Direito Civil, em virtude de as disposições fundamentais deste ascenderem ao plano constitucional. Tal fato é a conseqüência do que poderíamos considerar a ¿conseqüencialização experiencial¿ dos valores sociais básicos. Dir-se-á que os adeptos do Direito Natural clássico, especialmente da escola aristotélico-tomista, já admitiam a existência de direitos inatos e eternos, aos quais se deveriam submeter os dispositivos da Lei Civil, mas já agora valores há que se universalizaram como expressão da própria experiência social.

Refiro-me a valores que adquiriram tamanha força que eles, na imanência mesma da vida coletiva, já atuam ¿como se¿ fossem inatos. Nas últimas décadas tenho considerado tais valores ¿ como os da pessoa humana e da democracia e, mais recentemente, o ecológico, isto é, do direito ao meio ambiente saudável ¿ Invariantes Axiológicas, que assinalam os horizontes de toda a legislação positiva.

A aceitação de Invariantes Axiológicas é o superamento do relativismo pelo reconhecimento de que há valores que se projetam no cenário cultural como algo de estável e definitivo, não sujeito à erosão do tempo.

A Constituição de 1988, sobretudo no artigo 5º, mas em várias outras disposições, proclama a supremacia de tais valores, a começar pelo da pessoa humana, ao declarar, no inciso X do referido artigo 5º, ¿invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas¿.

O respeito à imagem, à posição condigna que tem o homem desde o seu nascimento, é o fundamento do direito da personalidade, que, depois, o novo Código Civil transformou em base de toda a legislação privada.

Nesse mesmo sentido, é declarado, logo a seguir, que ¿a casa é o asilo inviolável do indivíduo¿, o que dá um alto sentido de concreção social ao direito da personalidade.

Nessa linha de socialidade, ou seja, de harmonia individual-social, assegura-se, expressamente, não o direito abstrato de propriedade, declarando-se que esta ¿atenderá a sua função social¿.

Nunca será demais salientar essa correspondência concreta entre o que é individual e o social, no sentido de que a propriedade individual não visa apenas a proteção dos interesses objeto de um contrato, mas também o seu papel social, isto é, o seu perfil coletivo, de tal modo que não poderá abusar de sua condição de proprietário para atingir a sociedade, sem que um fim justo o legitime.

Sempre no mesmo artigo 5º, desejo realçar a garantia dada ao ¿direito de herança¿ (inciso XXX), que representa o respeito devido à família, que a Carta Magna, em seu artigo 226, considera ¿base da sociedade, tendo especial proteção do Estado¿.

Esses exemplos bastam para esclarecer o que afirmei de início, a crescente ¿constitucionalização do Direito Civil¿, sem afetar a independência deste, mas antes lhe dando maior força.

A Carta Magna dá tanta atenção à dimensão civil do Direito que o inciso XXVI, sempre do artigo 5º, chega ao detalhe de estatuir que ¿a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento¿.

A atenção dispensada pela Lei Maior à legislação civil é tão grande que a preserva mesmo quando se impõe a estatização de determinados serviços. Nessa ordem de idéias, é estabelecido no artigo 173 que as empresas públicas se sujeitam ao regime próprio das empresas privadas quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. Note-se que o Código Civil de 2002 trata como civis as obrigações comerciais.

Ultrapassamos, como se vê, o âmbito do antigo Direito Constitucional, que estabelecia apenas o mandado de segurança quanto a atos ilícitos que pudessem atingir a vida privada, passando esta a ser objeto de proteção positiva em diversas circunstâncias.

Bastará dizer que a Carta Magna chega a dispor sobre a usucapião como forma de aquisição da propriedade, nos artigos 183 e 191. Declara o primeiro, disciplinando a política urbana, que ¿aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º ¿ O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º ¿ Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º ¿ Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião¿.

Já o segundo, ao tratar da política agrícola, estabelece que ¿aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Parágrafo único ¿ Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião¿.

Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP. E-mail: reale@miguelreale. com.br. Home pages: www. miguelreale.com.br e www.realeadvogados.com.br