Título: O caso Watergate em dois tempos
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/06/2005, Aliás, p. J6

Naquele verão americano de 1974, Washington atingiu temperaturas sufocantes no mês de agosto. E a quinta-feira dia 9, data da renúncia do presidente Richard Nixon, não foi diferente. Ainda assim, o vestido florido usado por sua filha caçula Julie na derradeira aparição do pai perante a imprensa na Casa Branca pareceu particularmente absurdo e destoante. Nada conseguiria alegrar aquele ambiente. A começar pela própria Julie, trêmula de exaustão emocional. Sua irmã Tricia, a loirinha de pele de pêssego que poderia ter saído de um cartoon dos anos 50, se mantinha ereta para não desabar. E Pat Nixon, a primeira-dama que os jornalistas passaram décadas chamando de Plastic Pat, pôde ser observada em outra dimensão: a de guardiã de uma família em estado de choque. Curiosamente, aquele momento de triunfo absoluto da imprensa sobre um presidente conspiromaníaco e execrado transcorreu sem estocada final. Simplesmente não houve a habitual disputa entre repórteres para emplacar as perguntas mais demolidoras. Por desnecessário. O Richard Nixon postado à frente da malta com quem viveu às turras já estava reduzido à própria sombra. Não havia mais o que perguntar. O desfecho do chamado caso Watergate, com a inédita renúncia de um presidente dos Estados Unidos para escapar do impeachment, começava a adquirir sua verdadeira dimensão. E o significado de um Richard Nixon eviscerado de qualquer poder, procurando manter o característico ricto de sorriso forçado na despedida, encheu a sala de silêncio. Dali o presidente implodido seguiu direto para a História.

O pulso dos repórteres aquartelados na Casa Branca se normalizou logo que o vice-presidente Gerald Ford emergiu na sala, recém-empossado pelo chefe da Suprema Corte, Warren Burger, para liderar o país durante os 895 dias que ainda restavam do mandato de Nixon. Foi um prato cheio. Ford, de quem se dizia ser incapaz de fazer duas coisas ao mesmo tempo - como mascar chiclete e pensar -, mal deu dois passos e se enroscou no cipoal de cabos de tevê espalhados pelo chão. Choveram perguntas. Começava a era pós-Watergate, com seus mitos, heróis, desdobramentos. Ela durou 33 anos e encerrou-se na terça-feira, com estrondo. A revelação da identidade de Deep Throat, o mítico informante secreto que permitiu a uma dupla de intrépidos repórteres do Washington Post desvendar a teia de maquinações montada na Casa Branca, retrata bem mais do que a solução de um enigma. Ela permite olhar com crueza para os tempos de hoje.

Boa parte da geração americana com menos de 30 anos guarda pouco do que aprendeu na escola sobre Watergate. Não muito mais do que sobre Waterloo, para ficar só na letra "w". Hoje, a notoriedade do prédio de linhas sinuosas em Washington que deu nome ao escândalo não passa mais pelo fatal arrombamento da sede do Partido Democrata por uma quadrilha de trapalhões a serviço do governo Nixon.

- Este é o edifício Watergate, onde mora a secretária de Estado Condoleezza Rice - apontam os guias.

Para esta geração, a descoberta de que um segredo que vale milhões de dólares pudesse ter sido guardado esse tempo todo é quase incompreensível. Quase tão incompreensível quanto a decisão de W. Mark Felt de permanecer anônimo até os 91 anos de idade, podendo ter sido celebridade - e lucrado com ela - há tantos anos. Aplaudem, com gosto, a decisão da família de finalmente vir a público como forma de investimento para a educação dos netos. Nestes tempos em que a televisão vive da exposição diária das entranhas do privado e do público, e que blogueiros dessacralizam ininterruptamente qualquer segredo, o espaço ficou estreito para pactos sigilosos de qualquer natureza. As biografias dos próprios personagens-ícones da era Watergate, atualizadas no arrastão da revelação da identidade de Felt, mostram um constrangedor nivelamento para pior.

As irmãs Tricia e Julie, casadas e com filhos crescidos, não se dirigem a palavra há quase oito anos. O desentendimento começou em torno da divisão dos US$ 18 milhões pagos à família pelo governo americano pelos papéis presidenciais privados de Nixon. Segundo o jornalista Daniel Shoor, veterano da era Watergate, boa parte desse dinheiro já foi consumida para pagar advogados. Uma segunda disputa envolveu a administração da Biblioteca Richard Nixon, em Yorba Linda, na Califórnia. Tricia queria que ficasse em mãos da família, Julie defendia a contratação de um conselho independente. Prevaleceu. Por fim, continuam brigando sobre o que fazer com os US$ 19 milhões doados à biblioteca por Bebe Rebozo, o amigo de última trincheira do ex-presidente.

O perfil de Carl Bernstein e Bob Woodward, a dupla de repórteres que pode se gabar de ter destronado Richard Nixon, também se adaptou aos novos tempos. Na mutação, perdeu boa parte do brilho. "Deep Throat e toda a cobertura de Watergate galvanizaram o jornalismo como nada antes", sustenta a colunista mais irreverente do país, Molly Ivens. "Eu via desembarcar levas e mais levas de jovens querendo ser repórteres investigativos nas minhas salas de aula e tentava explicar que a modalidade é bem menos charmosa e romântica do que eles imaginavam. Na maioria das vezes, ela depende de ficar horas sentado numa cadeira dura lendo relatórios antigos de alguma companhia de seguros."

Inútil. Todo mundo queria se tornar um Carl Bernstein ou Bob Woodward, e ganhar um Prêmio Pulitzer, se possível. Sobretudo depois que Dustin Hoffman e Robert Redford interpretaram os dois heróis no filme Todos os Homens do Presidente, baseado no livro homônimo por eles publicado. Embora formassem uma dupla quase indissolúvel no jornalismo - chegou a ser criado um neologismo, os "Woodstein", para facilitar a conversa -, Bernstein sempre pareceu mais cativante para os padrões da época. Cabelão solto, modos arrojados, loquaz e atrevido. Sempre saía melhor nas fotos e entrevistas. Woodward era menos colorido. Carl fez investidas em Hollywood, desgarrou-se temporariamente do jornalismo, casou três vezes, faliu e se reergueu de um período de alcoolatria. Desentendeu-se com Bob durante a feitura do segundo livro e retornou à profissão que o celebrizou, como redator freelance. Sua escrita não perdeu o estilo. No ano passado, juntou sua assinatura à de Woodward para a venda de todo o material que acumularam do caso Watergate (exceto o referente a Deep Throat). Valor pago pela Universidade do Texas: US$ 5 milhões.

Passados 30 anos, Bob Woodward foi quem melhor soube investir no capital inicial chamado Watergate. Autor de 12 livros que freqüentaram com assiduidade a lista dos mais vendidos, está milionário. É um dos jornalistas de maior peso da imprensa americana atual e ocupa lugar de destaque no expediente do Washington Post. Nos últimos anos, vinha preparando meticulosamente o bote maior de sua carreira: revelar a identidade de Deep Throat no instante em que a promessa de segredo caducasse pela morte do personagem. Woodward sairia com uma operação de marketing insuperável: o derradeiro furo de reportagem de uma era, simultaneamente em páginas de jornal e formato livro. Considerando-se a estatura mítica que o enigma em torno de Deep Throat continuava mantendo, a aposta de Bob Woodward parecia imbatível.

Descarrilhou, como se sabe hoje, pela gula do repórter em não querer dividir os louros. Sondado pela família de W. Mark Felt para publicarem um relato a quatro mãos - leia-se, receita dividida -, esquivou-se e não parece ter advertido a chefia do Washington Post para o risco de ser furado. Confrontado com a revelação do segredo pela revista Vanity Fair, sonegou ao leitor do Washington Post o que lhe era devido: a reportagem máxima do jornalista Bob Woodward sobre o último mistério da era Watergate. Esquivou-se uma segunda vez. O texto que leva sua assinatura, instigante como sempre, mais parece o pedaço inicial do próximo livro do autor Bob Woodward. As revelações mais pertinentes, e salivosas, porém, continuam guardadas. A editora Simon & Shuster anuncia o lançamento relâmpago do livro para julho.

Ao longo de toda a semana, a dupla "Woodstein" se refez às pressas para dar conta da interminável demanda de aparições na tevê, debates, entrevistas. Embora todos os históricos encontros secretos de W. Mark Felt tivessem sido apenas com Bob Woodward - Carl jamais viu o informante de ouro -, a indústria de celebridades está eufórica com a reedição de um mito. Para a geração que viveu a era Watergate, os desdobramentos desse último capítulo reservam alguns consolos. Enquanto durou, foi bela a noção de um Deep Throat anônimo para sempre, por honra a um pacto de confiança entre homens de palavra. Para a história do jornalismo investigativo, é oportuno ficar claro que Deep Throat não foi uma fabricação de repórter, nem um amalgamado de fontes transformadas em mito. Foi, exatamente, o que o Washington Post e seus repórteres sempre disseram ser: um homem com acesso a informação privilegiada.

Numa época em que se tornou fluida a definição do que é ilegal, abuso de poder, corrupção, perjúrio, ou motivo para impeachment, não custa relembrar que o mundo - e o jornalismo - já passou por momentos melhores. Como explicar a um candidato a repórter que um presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, quase foi submetido a um pedido de impeachment por ter tentado acobertar suas licenciosidades eróticas com uma estagiária da Casa Branca, enquanto seu sucessor e atual presidente, George W. Bush, levou o país a uma guerra baseado em informações deliberadamente falsas, e ninguém se mexeu?

Faz tempo que o jornalismo caiu do pedestal que ocupou na era Watergate. E faz tempo que os rigorosos métodos de apuração da dupla Bernstein e Woodward vêm sendo imitados de forma catastrófica, por superficial, por repórteres e manipulados à exaustão pelo poder. William Safire, o último dos grandes colunistas conservadores, enfureceu-se tanto com uma sessão em "off" com o então secretário de Estado Henry Kissinger que ameaçou passar a designá-lo como "uma fonte do governo com forte sotaque germânico".

Nos Estados Unidos de George Bush, o cerco à fonte anônima se intensificou consideravelmente, com processos e ameaças de prisão a jornalistas que a protegem. A campanha conta com o apoio popular num país onde 45% da população acredita em pouco ou nada do que lê na imprensa, segundo levantamento do Pew Research Center. Também já obteve eco entre alguns donos de jornal. "A fonte anônima é um mal do jornalismo", decretou em janeiro deste ano o fundador do USA Today, Al Neuharth. Mas vale lembrar que foram fontes anônimas que disseminaram as primeiras fotos e relatos de tortura na prisão de Abu Ghraib. O legado maior de Watergate não está no uso de uma fonte que exige anonimato para falar. Está no uso que se faz dessa informação.