Título: Um desacato à democracia
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Nacional, p. A6

Ganhe quem puder, perca quem merecer, tanto faz; seja qual for o resultado da eleição de amanhã na Câmara dos Deputados, quando for anunciado o nome de seu próximo presidente já terá sido concluído o atestado de falência da democracia representativa tal como é exercida entre nós. O espetáculo de licenciosidade partidária exibido nos últimos dias era o que faltava para a decretação do óbito oficial do sistema em curso.

Todos os cargos da Mesa Diretora da Câmara são disputados pelo sistema cada um por si e, à exceção de Luiz Eduardo Greenhalgh, nenhum dos outros quatro pretendentes à presidência conta com respaldo oficial dos respectivos partidos.

O voto tem caráter absolutamente pessoal, e nunca como agora foram admitidas e absorvidas com naturalidade tantas deformações, como a transferência temporária de deputados de um partido para o outro, a fim de assegurar votos para este ou aquele candidato.

Trata-se de um jogo em que se faz qualquer negócio em troca das mais variadas mercadorias: dos cargos da Mesa aos postos de liderança das bancadas, passando por posições nas comissões especiais e permanentes do Parlamento.

Nesse ambiente, é impossível o governo sustentar a campanha em favor de Greenhalgh no discurso da legitimidade partidária: além de ter surgido no PT a primeira contestação ao critério, quando Virgílio Guimarães resolveu contestar a decisão da bancada, muito antes o governo já havia dados as regras ao passar por cima de todas as formalidades para obter maioria parlamentar e se relacionar com os partidos.

É fato, não foi o PT quem inventou a lassidão de conduta nem a perversão dos costumes partidários no Brasil. Até fez fama e carreira pregando a observância da ética, da disciplina partidária e da livre determinação das legendas. Mas mudou. Ou assumiu, dá no mesmo.

Se não foi o inventor, o PT no governo foi o grande incentivador do comportamento que levou a disputa pela presidência da Câmara aos píncaros da indecência em cartaz.

A título de demonstração, deixemos um pouco de lado a presidência para examinarmos o que acontece na cena lateral, onde os holofotes não iluminam com tanta intensidade : a escolha do líder do PMDB na Câmara.

A briga é lama pura. A ala governista quer manter o deputado José Borba e os oposicionistas querem eleger Saraiva Felipe. Capitão do time anti-Lula, o ex-governador Anthony Garotinho arrebanhou aliados em outros partidos e aumentou a bancada do PMDB de 77 para 85 deputados.

No oficial, os governistas reagiram indignados à "interferência indevida" de Garotinho. No paralelo tomaram suas providências: José Dirceu em pessoa ofereceu a José Borba o empréstimo de outros sete deputados para filiação temporária ao PMDB, a molde de reequilibrar o jogo.

Havia uma dificuldade, porém, na manobra: ela deixaria o PMDB com 92 deputados, tiraria do PT a condição de maior bancada e, com ela, a primazia de escolher os presidentes das comissões permanentes e temporárias mais cobiçadas.

Mas o presidente da Câmara, João Paulo Cunha, já se dispôs a resolver o problema, determinando que para efeito da composição das comissões seja considerado o tamanho das bancadas não em 14 de fevereiro, mas em 15 de dezembro passado, quando o PT tinha 90 e o PMDB 77 deputados.

É, simples assim. Mas degradante também.

Pois foi desse jeito, alterando procedimentos e ignorando princípios para ganhar posições que os partidos chegaram à situação atual. Perderam até a moral para propor reforma política, como acontece sempre que as excelências abusam e se sentem constrangidas a sair pela tangente.

Nada do que propuserem poderá ser recebido com algo menos que uma dose colossal de desconfiança.

Com perdão pela grosseria da comparação, não se pode querer rezar missa em ambiente de bordel. Ou bem ajustam-se os cenários aos personagens, ou o público não tem motivo para dar crédito ao espetáculo.

Primeiro e único

Pouco mais de 24 horas antes da eleição, ainda prevalecia na campanha do candidato oficial do PT a avaliação de que Luiz Eduardo Greenhalgh tem uma única chance de ganhar. É no primeiro turno. Se for para o segundo, perde.

O raciocínio é o seguinte: como o governo joga todas as fichas para resolver a parada de uma só vez, na eventualidade de uma segunda rodada já não teria mais nada a negociar, ficando seu candidato a mercê da boa vontade da oposição.

Os eleitores das outras candidaturas oriundas da base governista, as de Virgílio Guimarães e Severino Cavalcanti, trocariam votos entre si e, na soma, derrotariam Greenhalgh.

Por essa lógica, quem teria contas a acertar com o governo, não foi atendido antes do primeiro turno ou não se interessou em mudar de candidato, com mais razão repetiria o voto contra na etapa final.

A grande esperança dos partidários de Greenhalgh era o pefelista José Carlos Aleluia retirar a candidatura na última hora e o PSDB decidir ficar com o candidato oficial.

Ou seja, assim como nas reformas e nas votações de peso, como a Lei de Falências e as Parcerias Público-Privadas, o governo depende mesmo é da oposição que, aliás, não tem faltado ao Planalto nas horas difíceis. Valendo a escrita, agora não será diferente.