Título: Cobertor curto em Davos
Autor: Marcelo de Paiva Abreu*
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/01/2005, Economia, p. B2

Em tese, a visão estratégica que parece orientar a diplomacia brasileira poderia fazer sentido. É melhor que os interesses econômicos e políticos do País sejam diversificados do que concentrados, com um número reduzido de parceiros, como ocorre, por exemplo, com muitos países da América Latina em suas relações com os Estados Unidos. De fato, a História sugere que dificilmente o Brasil poderá almejar ocupar posição destacada internacionalmente se depender de relação especial com as grandes "potências". Na era republicana, o Brasil ocupou posição internacional de algum destaque só em momentos muito especiais, freqüentemente por razões negativas. Sem intenção de esgotar o tema, vêm à lembrança dois episódios beirando o anedótico. Em 1913, apertado pela crise financeira, o Brasil vendeu à Turquia o encouraçado Rio de Janeiro, em construção na Grã-Bretanha, provocando a ira de Winston Churchill, indignado com essa "interferência" no equilíbrio naval entre as potências européias. Na década de 1920, o Brasil, em chilique testemunhado com espanto em Genebra, retirou-se da Liga das Nações, amuado com a preterição de sua candidatura a membro permanente do Conselho em benefício da Alemanha.

No imediato pós 2.ª Guerra Mundial, talvez o momento de maior projeção potencial do Brasil no cenário internacional, as esperanças de protagonismo se frustraram rapidamente. O Brasil parecia estar em posição privilegiada. Os países da América Latina tinham 40% dos votos na ONU. O Brasil, afinal, havia optado pelo alinhamento estreito com os Estados Unidos e enviado tropas à Itália. Em contraste com a Argentina, simpatizante do Eixo, que escapou por pouco do vexame de, a exemplo de Portugal, ter de declarar luto oficial pela morte de Hitler. Mas, mesmo com beijo de Mangabeira na mão de Eisenhower e tudo mais, o Brasil não conseguiu lugar no Conselho de Segurança e não se beneficiou de ajuda econômica similar ao Plano Marshall.

A estratégia de diversificação de focos da política externa foi retomada com sucesso variável nos tempos da política externa independente janista e, depois, nas diferentes safras de diplomacia pragmática sob a ditadura militar. Seu sucesso mais notável, pelo menos inicial, foi a política angolana. Seu fracasso mais retumbante, o delirante acordo nuclear com a Alemanha. A política de todos os azimutes foi sendo consolidada na redemocratização e ocupou posição proeminente no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Embora, pelo menos no discurso, o governo Lula pareça aprofundar o compromisso com a diversificação, especialmente em direção a Nova Délhi e a Beijing, cabem sérias dúvidas quanto ao genuíno interesse de negociar realisticamente com as economias desenvolvidas, especialmente com os Estados Unidos. O desejo expresso de pleitear um lugar no Conselho de Segurança da ONU e os compromissos daí decorrentes sublinham outro tipo de dificuldade. Os recursos - financeiros, humanos, políticos - à disposição do governo brasileiro são escassos. A combinação de dois princípios de bom governo - "governar é escolher" e "em primeiro lugar, o essencial" - impõe limites práticos a essa política. É preciso que as relações com a vizinhança estejam em ordem antes de estabelecer objetivos globais ambiciosos. Cabe questionar se a implementação de uma política externa global ambiciosa com sucesso incerto não será conflitante com políticas mais prudentes e mais relevantes para a preservação dos interesses nacionais.

A situação hoje na América Latina sublinha, sob vários pontos de vista, os perigos suscitados pela exposição excessiva do Brasil além de suas áreas de influência imediatas. Que sentido faz enviar tropas ao Haiti para acumular boa vontade na ONU, quando é notória a deterioração das relações entre os dois principais vizinhos do País na Amazônia? De um lado, a Venezuela, exposta aos males do neopopulismo chavista, de outro, a Colômbia, vulnerável aos interesses do crime organizado e excessivamente dependente de Washington. A neutralização dessas tensões bilaterais e a redução da atual permeabilidade das fronteiras brasileiras ao tráfico de armas e tóxicos, especialmente na Amazônia, são objetivos nacionais que merecem prioridade máxima e requerem significativa mobilização de recursos.

No outro extremo do País, e em outra dimensão, os problemas estão relacionados à preservação do Mercosul, de longe o principal resultado da diplomacia comercial brasileira nos últimos 15 anos. O que se vê é uma Argentina chorona, explorando no varejo de forma sistemática a flexibilidade do governo brasileiro e uma sistemática ojeriza por parte de todos os parceiros do Mercosul a enfrentar seriamente as dificuldades quanto ao aprofundamento do processo de integração. Emblemático das atribulações brasileiras no Mercosul e no resto da América Latina é o endosso por parte praticamente de todo o continente da candidatura uruguaia à direção da OMC, abertamente criticada pelo Brasil e em franca oposição a um candidato brasileiro. É difícil acreditar que o melhor argumento que Brasília possa encontrar é que as cartas de endosso à candidatura Pérez del Castillo são "antigas".

O presidente deve deixar de lado o protagonismo deslumbrado - exemplificado por "eu mudei a agenda de Davos" - e convencer-se de que desse mato não vai sair coelho. O problema da fome no Brasil só será resolvido pelos brasileiros. Deveria concentrar esforços na contenção dos estragos provocados pelos atritos entre Colômbia e Venezuela, no aparelhamento das Forças Armadas brasileiras especializadas no controle de fronteiras e no remendo do Mercosul. A menos que o objetivo seja só discursar.

*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor-titular do Departamento de Economia da PUC-Rio